A obra pode ser perene, quando atravessa gerações. Mas para que isso ocorra há duas situações: ou essa eternidade é promovida por interesses econômicos (gravadoras, imprensa) ou pelo público, apenas pelo seu apreço e amor à obra.
O sonho de quase todo músico é ser um compositor renomado ou intérprete reconhecido. Mas nem sempre isso é possível, e não porque as pessoas não tenham capacidade para tanto, mas porque além do talento é preciso uma estrutura empresarial. Mesmo o mundo underground ou as diversas cenas alternativas obedecem aos mesmos parâmetros humanos – e desumanos – que regem todas as paixões humanas e corporações. E mesmo dentro dessas cenas, de contracultura, os artistas e o público agem como todos os outros, louvando quem tem mais exposição ou quem segue a cartilha de suas subculturas.
Não havia guitarra pesada no Brasil nos anos 1970. E quando a gente ouvia uma delas, era uma celebração. Mas ao mesmo tempo, havia outras leituras, muitas minhas, sobre as quais não discorrerei agora, porque o foco deste texto é sobre a sobrevivência do artista. Sobreviver não é uma coisa idealizada. O artista cria, e como todos, deve poder pagar as suas contas com o suor do trabalho e o respeito do público que investe em sua carreira, lançamentos e apresentações. Tapas nas costas e likes não são suficientes.
Conheci Baldanza e Manito do Som Nosso no escritório da revista Rock Brigade na primeira metade da década de 2000. Contei ao Pedro como a faixa Bicho do Mato fazia minha felicidade de menino e ao mesmo tempo quis saber dele sobre as batalhas modernas, sobre o dia-a-dia, a luta pela sobrevivência após os anos 1970 – porque eu mesmo não queria viver apenas do meu passado. O artista é um ser que cria diariamente. É como respirar. E apesar de lidar com a fantasia, com o lúdico, o artista não pode e nem deve viver apenas dela, não se deve fantasiar a realidade sob pena de enlouquecer ou de ser engolido por ela.
Em 2019, um pouco antes de Baldanza falecer, ele havia postado duas mensagens em 15 de outubro nos seguintes termos: “Triste observar que apesar de todos os esforços o público paulista não prestigia seus músicos… Bajulam no Facebook mas não levantam a bunda da cadeira !!!!” e “Não preciso ser bajulado no Facebook, preciso é da presença nos shows”.
E Pedro morreu antes que as pessoas entendessem o recado, o
grito de alerta e conscientização… Ou de desespero.
Esta declaração foi feita por Sarah Bernhardt (Henriette-Rosine Bernard, nascida em 22 ou 23/10/1844 e desencarnada em 26/3/1923), considerada a maior atriz do século XIX.
Sarah, a rainha do drama.
Bernhardt esteve no Brasil três vezes, exatamente em 1886, 1893 e 1905. Do Império à República. Porém, o país não fez parte de suas melhores memórias como a diva registrou em suas cartas. Além de atriz, a dama era uma empresária teatral que percebeu a necessidade de atingir novos mercados. O Brasil, escolhido para ser o ponto de partida da segunda tournê às Américas, recebeu-a no auge, com 42 anos. A atriz desembarcou no porto do Rio de Janeiro no dia 27 de maio de 1886 do navio Cotopaxi. Intelectuais e estudantes a tietaram e recepcionaram, entre eles o dramaturgo Artur Azevedo.
O primeiro relato da atriz ao amigo Raoul Ponchon diz muito: “Finalmente aqui estou, depois de 22 dias no mar. Que viagem esplêndida, que país maravilhoso! (…) Mas a cada alegria corresponde uma tristeza. Se o país é extraordinário, o clima é terrível. A fabulosa vegetação se deve ao calor extremo e à medonha umidade (…) Todo mundo anda meio doente…”.
“Pour quoi suis-je venu ici?”
Sarah Bernhardt se apresentou no Imperial Teatro de São Pedro de Alcântara, no Rossio, atual praça Tiradentes. O Imperador D. Pedro II (conhecido como o “monarca teatreiro”) compareceu a todas as apresentações e não escapou à análise sarcástica da francesa: “O imperador do Brasil parece que é pobre demais para comprar uma assinatura. Toda noite chega no teatro numa carruagem puxada por quatro mulas ofegantes. E que carruagem! Tão absurda quanto seus guardas esfarrapados. Esses galantes brasileiros parecem que estão sempre brincando. Brincam de construir casa, de abrir estradas, de apagar incêndios, de ser entusiásticos”.
E não para por aí. Sarah reclama dos “ladrões sanguinários”; do teatro de luzes fracas e com “camundongos por toda a parte”. Mas caro leitor, não acredite que só a diva é quem reclamava. Os brazucas também colocavam as barbas de molho.
O dramaturgo e jornalista R. Magalhães Júnior escreveu que a companhia de Sarah trouxe “cenários paupérrimos”. E como se não bastasse, o ator Philippe Garnier, que interpretava o seu par romântico na peça “A Dama das Camélias” (de Alexandre Dumas Filho) entrou no palco sem os bigodes – o símbolo da “varonilidade” do personagem Armand Duval. Os estudantes gritaram “Fora com o canastrão!”, antes de ensaiar uma vaia, além de atirarem pontas de cigarro, quase incendiando o vestido de uma dama na platéia. O tal fã, descrito no início da matéria, o dramaturgo Artur Azevedo, se ergueu para defendê-la: “É assim que vocês querem apresentar o Brasil no exterior?”. Os estudantes se acalmaram, Garnier retornou com os nervos à flor da pele e Sarah, acuada, deu o máximo de si, arrancando aplausos frenéticos da platéia. Na sequência, outros problemas ocorreram: Martha Noirmont, uma atriz de sua companhia a acusou de agressão e Maurice, o filho de Sarah, de 21 anos, apanhou no saguão do hotel por ter “dirigido gracejos com desembaraço parisiense” às donzelas. Segundo a mãe do rapaz, foi uma “tentativa de homicídio”.
Cleópatra.
Segunda
visita.
Dessa vez, a atriz alugou um palacete em Botafogo, na zona sul da cidade, e contratou vários empregados, que deveriam falar francês. Mesmo com tais antecendentes (o conhecimento da língua) a patroa descobriu que estava sendo roubada!Sumiram jóias no valor de 250 mil francos, além de três maços de notas de liras contabilizando o total de 189 mil. A polícia prendeu geral e achou dois contraventores: um francês e um espanhol, nenhum brasileiro. Mas nada do material roubado. O chefe da “poliçada” carioca comentou à época que o roubo talvez fizesse parte de uma estratégia da atriz para atrair mais atenção e público às suas peças.
Jesus na cruz…
Adicione-se a tudo isso que um crítico brasileiro escreveu que a
atriz, já com 49 anos, estava um tanto “velhota” e chamou-a textualmente de “múmia”.
E quem surgiu para defendê-la? Artur Azevedo!
Durante a partida do navio Sénegal, no qual Bernhardt deixava a capital federal, estourou uma rebelião na Marinha chefiada pelo contra-almirante Wanderkolk, dois meses antes da famosa Revolta da Armada contra o governo de Floriano Peixoto. O mastro da embarcação de Sarah foi atingido por uma bala perdida. Um longo artigo no jornal parisiense Le Figaro escreveu que a atriz “nunca mais poria os pés no Brasil”. Mas adivinhem o que aconteceu?
“yeux dans les yeux.”
Terceiro
tempo.
Em 1905, o Brasil já era uma República e cá Sarah se encontrava novamente porque estava quebrada, sem um tostão. E percebam a delicadeza da situação: Bernhardt teria que enfrentar o público de quem ela havia falado tão mal no Figaro. Para complicar, a atriz sentia fortes dores no joelho direito, devido às diversas vezes (30 por espetáculo) em que se jogava no chão interpretando Joanna d´Arc. Os biógrafos dizem que em Buenos Aires formou-se um abscesso que necessitou de uma intervenção cirúrgica. Três meses depois da capital portenha, a francesa estava de volta ao Rio. E quem levantou-se no primeiro e segundo atos de La Sorcière de Victorien Sardou pedindo clemência à platéia que a espezinhava por causa das críticas feitas ao país, anos antes? Nem citarei o nome do defensor perpétuo para não parecer perseguição… E mais uma vez, o público terminou aplaudindo-a de pé.
“Bolada com o Brasil!”
Por coincidência ou karma, o Brasil, em parte, foi responsável
pela morte da atriz.
Durante a última encenação da ópera La Tosca (de Sardou) em 1905, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, a atriz pulou de um parapeito cenográfico para cair sobre colchões colocados atrás do cenário, mas daquela vez o funcionário do Teatro Lírico se esqueceu de cumprir a sua função e a francesa machucou gravemente o joelho direito. Ela nem conseguiu retornar ao palco para receber os aplausos. O acidente causou a gangrena que se desenvolveu em sua perna. Apesar dos apelos dos amigos para que permanecesse no Rio de Janeiro para se tratar, mesmo manca e febril, Bernhardt partiu para os Estados Unidos. Horrorizada com as mãos sujas do médico de bordo, não permitiu que ele tocasse em seu joelho. A situação só piorou e dez anos depois, Sarah foi obrigada a amputar a perna direita em 1915. Mesmo assim, a atriz continuou atuando por mais alguns anos até falecer em Paris em 1923. Brasil… Ame-o ou deixe-o!
A camiseta mostra a capa da segunda edição da revista Tupinambah, que contém uma única história: Estado de Exceção. A motivação que me faz editar, escrever e desenhar, além da questão artística, é acima de tudo consciencial, humana. Não tenho leitores, tenho camaradas. E juntos construímos um país livre em que todos possam se expressar em termos artísticos, religiosos, políticos e sociais. Se esta liberdade está em risco, se a ilusão toma conta de almas e mentes cabe a nós, guerreiros da liberdade tomar o destino em nossas mãos.
A americana Lee Miller (Poughkeepsie, Nova Iorque 1907 – Sussex, 1977) teve uma vida fascinante e não menos conturbada.
Estuprada aos sete anos, contraiu gonorréia e sofreu durante anos por causa dos tratamentos a que era submetida. Seu pai, foi quem lhe ensinou os primeiros truques da fotografia e Lee era a sua modelo favorita. O fato mais notável dos nus da filha feitos pelo pai Theodore Miller, seja que a modelo parece ausente, separando sua mente do corpo.
Rica, rebelde, bonita e livre, Miller foi para Paris em 1929 para se tornar, ela mesma, uma grande fotógrafa e segundo a revista Time “o mais lindo umbigo de Paris”.
Miller escolheu devidamente o fotógrafo mais artista de todos, Man Ray, de quem foi assistente, amante e musa para ser seu guia no escuro da nova e velha cidade. Man Ray, nascido Emmanuel Radnitsky, na Filadélfia – havia seguido seu amigo Marcel Duchamp de Nova Iorque até Paris, onde foi adotado pelos surrealistas. Miller se embrenhou no Surrealismo trabalhando com os códigos do subconsciente, sonho e delírio do estilo. Inclusive arrumou tempo para ser interpretar uma estátua no curta “O Sangue de um Poeta” de Jean Cocteau, o que deixou Ray louco porque ela foi submetida a uma verdadeira tortura, com os braços atados, a cabeça coberta por uma peruca de papel machê e pintada com uma tinta branca e ainda tendo que enfrentar um boi, salvo de um matadouro para representar um touro.
Man Ray e Robert Penrose
Ray ensinou-lhe vários truques e a tornou uma artista de fato, (solarização e fotos de nus avant-garde) mas o fotógrafo era tão apaixonado e possessivo por ela, que após a separação dos dois, ele ainda escreveu-lhe uma carta arrebatadora:
“Amei você de uma forma extraordinária e possessiva: esse amor reduziu em mim a intensidade de qualquer outra paixão, e, para compensar, tenho tentado justificá-lo, dando a você todas as oportunidades que estão ao meu alcance para que tudo de interessante em você se revele. Quanto mais capaz você parecia, mais o meu amor parecia justificado, e menos me arrependia de qualquer esforço em vão da minha parte (…). Sempre fizemos concessões mútuas – até que surgiu esse novo elemento, que lhe deu a ilusão de que está se libertando de mim…”
Duas das mais famosas obras de arte de Man Ray sobre a perda de sua paixão são:
“Objeto a ser destruído”, um metrônomo com o olho de Lee no ponteiro que teve várias cópias pois nasceu para ser literalmente destruído e “Tempo de Observatório” onde os lábios da amante ondulam nos céus sobre uma grande cidade.
“A sua beleza a transformou em ícone do momento, na perfeita Nova Mulher, que evoluiu do charme “duvidoso” de boneca de porcelana por Louise Brooks ou Clara Bow até o vigor pouco convencional, esbelto e de longas pernas, a força elástica, suavizada por uma fresca inocência americana – um galgo insinuante bonito, ávido para entrar na corrida” como escreveu Francine Prose no livro A Vida das Musas.
Miller montou um estúdio de fotografia na capital francesa, e dedicou-se ao retrato e à fotografia de moda. De volta a Nova Iorque em 1932, tentou a mesma sorte, obtendo algum reconhecimento e dinheiro, mas a sua alma impaciente não iria aguentar aquela vida durante mais tempo. O negócio corria bem até que surgiu Aziz Eloui Bey, um milionário egípcio com quem se casou, fechando o estúdio e indo de mala e cuia para o Cairo. Nimet, a bela esposa de Aziz se suicidou assim que soube do romance dos dois. E Man Ray tirou um retrato de si mesmo apontando um revólver para a cabeça, sugerindo que iria fazer o mesmo.
Complacente, o marido deixou com que ela tivesse amantes e que continuasse fotografando para que a esposa não ficasse entediada. 5 anos depois, mais uma vez o Surrealismo bateu-lhe à porta através de Roland Penrose, artista interessado nas profundezas do espírito humano, aquele que viria a ser o segundo marido de Lee em Londres. Era uma momento conturbado para a Europa e para o mundo: a Segunda Grande Guerra estava bem próxima de estourar.
A vida boêmia entre geniais artistas inconsequentes, talvez antecipando o que estava por vir – a Guerra -, fez Miller retratar essa fase de sua vida tramando uma de suas fotos mais curiosas, mezzo inspirada em Paul Gauguin, e seus quadros com as taitianas com seios à mostra, e mezzo mesclada ao escandaloso quadro O piquenique no bosque de Édouard Manet, pintado entre 1862 e 1863. Nessa famosa composição de Miller, estão presentes o poeta Paul Eluard e sua mulher Nusch (os que namoram) em companhia do pintor inglês Roland Penrose, do fotógrafo Man Ray e da dançarina Ady Fidelin, num piquenique de verão na Île Sainte-Marguerite em Cannes na França em 1937.
Nessa fase, Miller aceitou o convite de trabalho da revista Vogue.
Em 1939, ela e Penrose souberam ad invasão da Polônia pelos alemães e foram residir em Downshire Hill, Hampstead longe da França e fora do centro de Londres. Mas as bombas nazistas mais tarde chegariam à ilha e Miller não ficou imune a isso. O livro “Grim Glory: Pictures of Britain Under Fire” de Lee mostra uma Londres bombardeada, mas suas fotografias de ruínas são estilosamente sarcásticas e elegantes, como nunca se vira antes.
A um ano do fim da Segunda Guerra Mundial, a revista manda-a para a frente de combate. Lee forma equipa com o fotógrafo da revista LifeDavid E. (ou Dave) Scherman, tornando-se uma das poucas mulheres a fotografar o conflito na Europa. 20 dias depois do Dia D, desembarca na Normandia. Fotografa o cerco a St. Malo, a Libertação de Paris, os combates no Luxemburgo e na Alsácia, o encontro entre russos e americanos em Torgau e a libertação dos campos de concentração de Buchenwald e Dachau. Em Munique, regista as casas de Hitler e Eva Braun. E essa é uma de suas imagens mais conhecidas e provocativas: fotografada por Scherman, Lee surge na banheira do ditador alemão em Munique, entre uma provável arrumação do retrato de Hitler á esquerda e o nu “kitsch” à direita.
Outras fotos fascinantes são a de uma moça loura estendida sobre um sofá como se estivesse adormecida, mas na verdade é a suicida filha do burgomestre nazista de Leipzig e a da casa de Hitler em Berchtesgaden ardendo em chamas.
“A Alemanha possui uma bela paisagem marcada por vilas que são verdadeiras jóias, e cidades arruinadas habitadas por esquizofrênicos. O cenário da Guerra não ocorreu muito dentro do país, a punição pela agressão não foi suficientemente dura.”
Com a queda da Alemanha, Lee segue para leste no rasto dos mortos e feridos, vítimas de um a guerra monstruosa. De regresso a Londres, trabalhou mais dois anos para a Vogue fazendo retratos de celebridades e muitas fotos de moda.
Depois de uma discussão com Penrose, Lee voltou para Paris,onde caiu numa depressão agravada por u consumo descontrolado de álcool e benzedrina. Em uma carat não enviada a Penrose se queixou “de um mundo novo e enganador. Não foi para viver em paz em um mundo de canalhas sem honra, sem integridade e sem vergonha que nenhum de nós lutou”.
A Lee que retornou para a Inglaterra e para Penrose era um desastre físico e mental. Grávida, na casa sem aquecimento de Penrose, se entregou à derrota, inclusive aceitando (após ter feito por milhares de vezes o mesmo) um ménage que incluía ela mesma, Penrose e sua ex-mulher Valentine. Ah… nesse período ela se divorciou na mais bela tradição muçulmana do egípcio boa praça.
A festa em Farley Farm, casa do recém casado casal em Sussex, torna-se um local de visita obrigatória para a vanguarda artística que passava pela Inglaterra. Porém o seu trabalho como fotógrafa piorou drasticamente. E para completar, em 1955 desistiu de sexo e Roland se entregou a um romance com a trapezista Diane Deriaz. Enquanto Roland virava curador da Tate Gallery em 1960, Miller desinteressada da arte, entrou de cabeça no mundo da culinária.
Lee Miller desencarna aos 70 anos vítima de um câncer em 1977. No início dos anos 80, o filho de ambos, Antony, começa a estudar, conservar e promover as imagens da mãe porque sua esposa queria achar fotos do marido quando era bebê e vasculhando os baús esquecidos no sótão da casa em Farley Farm encontrou o original da matéria sobre o cerco de St. Malo na Europa.