“A vida aqui no Brasil é feia – oh, muito feia.”

Arte Matérias

Esta declaração foi feita por Sarah Bernhardt (Henriette-Rosine Bernard, nascida em 22 ou 23/10/1844 e desencarnada em 26/3/1923), considerada a maior atriz do século XIX.

Sarah, a rainha do drama.

Bernhardt esteve no Brasil três vezes, exatamente em 1886, 1893 e 1905. Do Império à República. Porém, o país não fez parte de suas melhores memórias como a diva registrou em suas cartas. Além de atriz, a dama era uma empresária teatral que percebeu a necessidade de atingir novos mercados. O Brasil, escolhido para ser o ponto de partida da segunda tournê às Américas, recebeu-a no auge, com 42 anos. A atriz desembarcou no porto do Rio de Janeiro no dia 27 de maio de 1886 do navio Cotopaxi. Intelectuais e estudantes a tietaram e recepcionaram, entre eles o dramaturgo Artur Azevedo.

O primeiro relato da atriz ao amigo Raoul Ponchon diz muito: “Finalmente aqui estou, depois de 22 dias no mar. Que viagem esplêndida, que país maravilhoso! (…) Mas a cada alegria corresponde uma tristeza. Se o país é extraordinário, o clima é terrível. A fabulosa vegetação se deve ao calor extremo e à medonha umidade (…) Todo mundo anda meio doente…”.

“Pour quoi suis-je venu ici?”

Sarah Bernhardt se apresentou no Imperial Teatro de São Pedro de Alcântara, no Rossio, atual praça Tiradentes. O Imperador D. Pedro II (conhecido como o “monarca teatreiro”) compareceu a todas as apresentações e não escapou à análise sarcástica da francesa: “O imperador do Brasil parece que é pobre demais para comprar uma assinatura. Toda noite chega no teatro numa carruagem puxada por quatro mulas ofegantes. E que carruagem! Tão absurda quanto seus guardas esfarrapados. Esses galantes brasileiros parecem que estão sempre brincando. Brincam de construir casa, de abrir estradas, de apagar incêndios, de ser entusiásticos”.

E não para por aí. Sarah reclama dos “ladrões sanguinários”; do teatro de luzes fracas e com “camundongos por toda a parte”. Mas caro leitor, não acredite que só a diva é quem reclamava. Os brazucas também colocavam as barbas de molho.

O dramaturgo e jornalista R. Magalhães Júnior escreveu que a companhia de Sarah trouxe “cenários paupérrimos”. E como se não bastasse, o ator Philippe Garnier, que interpretava o seu par romântico na peça “A Dama das Camélias” (de Alexandre Dumas Filho) entrou no palco sem os bigodes – o símbolo da “varonilidade” do personagem Armand Duval. Os estudantes gritaram “Fora com o canastrão!”, antes de ensaiar uma vaia, além de atirarem pontas de cigarro, quase incendiando o vestido de uma dama na platéia. O tal fã, descrito no início da matéria, o dramaturgo Artur Azevedo, se ergueu para defendê-la: “É assim que vocês querem apresentar o Brasil no exterior?”. Os estudantes se acalmaram, Garnier retornou com os nervos à flor da pele e Sarah, acuada, deu o máximo de si, arrancando aplausos frenéticos da platéia. Na sequência, outros problemas ocorreram: Martha Noirmont, uma atriz de sua companhia a acusou de agressão e Maurice, o filho de Sarah, de 21 anos, apanhou no saguão do hotel por ter “dirigido gracejos com desembaraço parisiense” às donzelas. Segundo a mãe do rapaz, foi uma “tentativa de homicídio”.

Cleópatra.

Segunda visita.

Dessa vez, a atriz alugou um palacete em Botafogo, na zona sul da cidade, e contratou vários empregados, que deveriam falar francês. Mesmo com tais antecendentes (o conhecimento da língua) a patroa descobriu que estava sendo roubada! Sumiram jóias no valor de 250 mil francos, além de três maços de notas de liras contabilizando o total de 189 mil. A polícia prendeu geral e achou dois contraventores: um francês e um espanhol, nenhum brasileiro. Mas nada do material roubado. O chefe da “poliçada” carioca comentou à época que o roubo talvez fizesse parte de uma estratégia da atriz para atrair mais atenção e público às suas peças.

Jesus na cruz…

Adicione-se a tudo isso que um crítico brasileiro escreveu que a atriz, já com 49 anos, estava um tanto “velhota” e chamou-a textualmente de “múmia”. E quem surgiu para defendê-la? Artur Azevedo! 

Durante a partida do navio Sénegal, no qual Bernhardt deixava a capital federal, estourou uma rebelião na Marinha chefiada pelo contra-almirante Wanderkolk, dois meses antes da famosa Revolta da Armada contra o governo de Floriano Peixoto. O mastro da embarcação de Sarah foi atingido por uma bala perdida. Um longo artigo no jornal parisiense Le Figaro escreveu que a atriz “nunca mais poria os pés no Brasil”. Mas adivinhem o que aconteceu?

“yeux dans les yeux.”

Terceiro tempo.

Em 1905, o Brasil já era uma República e cá Sarah se encontrava novamente porque estava quebrada, sem um tostão. E percebam a delicadeza da situação: Bernhardt teria que enfrentar o público de quem ela havia falado tão mal no Figaro. Para complicar, a atriz sentia fortes dores no joelho direito, devido às diversas vezes (30 por espetáculo) em que se jogava no chão interpretando Joanna d´Arc. Os biógrafos dizem que em Buenos Aires formou-se um abscesso que necessitou de uma intervenção cirúrgica. Três meses depois da capital portenha, a francesa estava de volta ao Rio. E quem levantou-se no primeiro e segundo atos de La Sorcière de Victorien Sardou pedindo clemência à platéia que a espezinhava por causa das críticas feitas ao país, anos antes? Nem citarei o nome do defensor perpétuo para não parecer perseguição… E mais uma vez, o público terminou aplaudindo-a de pé.

A atriz Sarah Bernhardt e o Brasil.
“Bolada com o Brasil!”

Por coincidência ou karma, o Brasil, em parte, foi responsável pela morte da atriz.

Durante a última encenação da ópera La Tosca (de Sardou) em 1905, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, a atriz pulou de um parapeito cenográfico para cair sobre colchões colocados atrás do cenário, mas daquela vez o funcionário do Teatro Lírico se esqueceu de cumprir a sua função e a francesa machucou gravemente o joelho direito.  Ela nem conseguiu retornar ao palco para receber os aplausos. O acidente causou a gangrena que se desenvolveu em sua perna. Apesar dos apelos dos amigos para que permanecesse no Rio de Janeiro para se tratar, mesmo manca e febril, Bernhardt partiu para os Estados Unidos. Horrorizada com as mãos sujas do médico de bordo, não permitiu que ele tocasse em seu joelho. A situação só piorou e dez anos depois, Sarah foi obrigada a amputar a perna direita em 1915. Mesmo assim, a atriz continuou atuando por mais alguns anos até falecer em Paris em 1923. Brasil… Ame-o ou deixe-o!

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