Livro Mil Shows do Melvin.

Estrada – Mil Shows do Melvin – 354 páginas  (Independente – 2019).

Estrada é a biografia de um jovem músico brasileiro, carioca descendente de portugueses, que adotou o rock alternativo (termo recorrente nos anos 90) como linguagem para se inserir neste mundo.

Mas, em primeiro lugar é preciso alertar ao leitor que não existe esse tal de Melvin! Se ele assinar cheques com esse nome, desconfiem. Melvin sempre será o nosso Miguel, o eterno jovem candidato a “rocker” que estudava no colégio Santo Agostinho no Rio de Janeiro nos anos 90, ou na mesma sala, não me recordo, de uma vizinha do andar de cima do meu prédio. Fui o seu professor de música, guitarra ou baixo, há tempos inconfessáveis. Conversamos muito, e quando precisei, ele se prontificou a me ajudar nas fileiras das bandas Usina Le Blond e Mustang.  

Não há como medir a relevância do Miguel para a cena carioca de rock e da música alternativa nacional a partir dos anos 90. Ele sonhou, fez por onde, batalhou, investiu dinheiro, tempo, e ainda escreve, literalmente em um livro, uma inspiradora história de sobrevivência e foco. Ele é do rock, como se diz, mas Miguel é mais do que isso. Ele também é funk, samba, discotecagem (ainda existe esse termo?), e batucada. Consciente, aprendeu desde cedo que para tudo nesta vida é preciso de alguma política para fazer a roda girar. E assim, iniciado nas artes ocultas, além de fundar o Carbona, – “bubble-gum” como ele gostava de alcunhar -, Miguel tocou em e com várias bandas durante décadas. Sendo que o seu maior talento é que ele sempre se mostrou disposto a aprender. Aprender para ensinar.

Conversamos sobre este livro há alguns meses, antes mesmo do lançamento, e o papo rolou sobre “passar a tocha”… Mesmo que na maioria dos casos, isso não seja possível. Mas é necessário acreditar. Nem que seja um pouquinho.

Há várias passagens em Mil Shows do Melvin, – financiado por uma campanha -, que mostram um pouco da alma desse homem-menino que participou, mesmo, de mais de mil shows neste pedaço de chão chamado Brasil e em vários outros países. Miguel rodou muita estrada, enfrentou dificuldades, teve tantas alegrias quanto, e soube esperar e agir. Sim, não é fácil. Mas para isso é preciso mais do que boa vontade. Mesclam-se estrutura emocional e financeira, um pouco de coragem, bons relacionamentos, ingenuidade, oportunidades e muita sorte. Não necessariamente nessa ordem…

O livro Estrada é um diário de viagens com descrição de personagens e bastidores. Há passagens deliciosas (que não devo compartilhar porque seria bullying!) como a de ter tocado com os Buzzcocks e de ter se apresentado no CBGB. Há a história do anão (ladrão!), Los Hermanos, Autoramas, Dictators, Marky Ramone, a peça-ópera-rock Hedwig (que adoro até hoje), Monobloco, etc, etc, etc e etc. E nada menos do que isso.

Se há algum pecado no livro – se há – é o de “fazer” sugerir que todo mundo pode ser capaz de percorrer a mesma trajetória. Livros e biografias inspiram, mas não apresentam soluções. A vida ensina. Diariamente. Podemos conciliar algumas ideias, cruzar alguns caminhos, mas não há uma determinante que afirme que isso ou aquilo “dará certo”. Dar certo é ser, fazer. Seja para 5 ou 5 mil. E nesse quesito, Miguel – ou Melvin – tem sido muito bem sucedido. E que haja mais estradas para que os sonhos desse jovem-homem se transformem em mais realidades! Vai, Miguel! vai!

“A vida aqui no Brasil é feia – oh, muito feia.”

Esta declaração foi feita por Sarah Bernhardt (Henriette-Rosine Bernard, nascida em 22 ou 23/10/1844 e desencarnada em 26/3/1923), considerada a maior atriz do século XIX.

Sarah, a rainha do drama.

Bernhardt esteve no Brasil três vezes, exatamente em 1886, 1893 e 1905. Do Império à República. Porém, o país não fez parte de suas melhores memórias como a diva registrou em suas cartas. Além de atriz, a dama era uma empresária teatral que percebeu a necessidade de atingir novos mercados. O Brasil, escolhido para ser o ponto de partida da segunda tournê às Américas, recebeu-a no auge, com 42 anos. A atriz desembarcou no porto do Rio de Janeiro no dia 27 de maio de 1886 do navio Cotopaxi. Intelectuais e estudantes a tietaram e recepcionaram, entre eles o dramaturgo Artur Azevedo.

O primeiro relato da atriz ao amigo Raoul Ponchon diz muito: “Finalmente aqui estou, depois de 22 dias no mar. Que viagem esplêndida, que país maravilhoso! (…) Mas a cada alegria corresponde uma tristeza. Se o país é extraordinário, o clima é terrível. A fabulosa vegetação se deve ao calor extremo e à medonha umidade (…) Todo mundo anda meio doente…”.

“Pour quoi suis-je venu ici?”

Sarah Bernhardt se apresentou no Imperial Teatro de São Pedro de Alcântara, no Rossio, atual praça Tiradentes. O Imperador D. Pedro II (conhecido como o “monarca teatreiro”) compareceu a todas as apresentações e não escapou à análise sarcástica da francesa: “O imperador do Brasil parece que é pobre demais para comprar uma assinatura. Toda noite chega no teatro numa carruagem puxada por quatro mulas ofegantes. E que carruagem! Tão absurda quanto seus guardas esfarrapados. Esses galantes brasileiros parecem que estão sempre brincando. Brincam de construir casa, de abrir estradas, de apagar incêndios, de ser entusiásticos”.

E não para por aí. Sarah reclama dos “ladrões sanguinários”; do teatro de luzes fracas e com “camundongos por toda a parte”. Mas caro leitor, não acredite que só a diva é quem reclamava. Os brazucas também colocavam as barbas de molho.

O dramaturgo e jornalista R. Magalhães Júnior escreveu que a companhia de Sarah trouxe “cenários paupérrimos”. E como se não bastasse, o ator Philippe Garnier, que interpretava o seu par romântico na peça “A Dama das Camélias” (de Alexandre Dumas Filho) entrou no palco sem os bigodes – o símbolo da “varonilidade” do personagem Armand Duval. Os estudantes gritaram “Fora com o canastrão!”, antes de ensaiar uma vaia, além de atirarem pontas de cigarro, quase incendiando o vestido de uma dama na platéia. O tal fã, descrito no início da matéria, o dramaturgo Artur Azevedo, se ergueu para defendê-la: “É assim que vocês querem apresentar o Brasil no exterior?”. Os estudantes se acalmaram, Garnier retornou com os nervos à flor da pele e Sarah, acuada, deu o máximo de si, arrancando aplausos frenéticos da platéia. Na sequência, outros problemas ocorreram: Martha Noirmont, uma atriz de sua companhia a acusou de agressão e Maurice, o filho de Sarah, de 21 anos, apanhou no saguão do hotel por ter “dirigido gracejos com desembaraço parisiense” às donzelas. Segundo a mãe do rapaz, foi uma “tentativa de homicídio”.

Cleópatra.

Segunda visita.

Dessa vez, a atriz alugou um palacete em Botafogo, na zona sul da cidade, e contratou vários empregados, que deveriam falar francês. Mesmo com tais antecendentes (o conhecimento da língua) a patroa descobriu que estava sendo roubada! Sumiram jóias no valor de 250 mil francos, além de três maços de notas de liras contabilizando o total de 189 mil. A polícia prendeu geral e achou dois contraventores: um francês e um espanhol, nenhum brasileiro. Mas nada do material roubado. O chefe da “poliçada” carioca comentou à época que o roubo talvez fizesse parte de uma estratégia da atriz para atrair mais atenção e público às suas peças.

Jesus na cruz…

Adicione-se a tudo isso que um crítico brasileiro escreveu que a atriz, já com 49 anos, estava um tanto “velhota” e chamou-a textualmente de “múmia”. E quem surgiu para defendê-la? Artur Azevedo! 

Durante a partida do navio Sénegal, no qual Bernhardt deixava a capital federal, estourou uma rebelião na Marinha chefiada pelo contra-almirante Wanderkolk, dois meses antes da famosa Revolta da Armada contra o governo de Floriano Peixoto. O mastro da embarcação de Sarah foi atingido por uma bala perdida. Um longo artigo no jornal parisiense Le Figaro escreveu que a atriz “nunca mais poria os pés no Brasil”. Mas adivinhem o que aconteceu?

“yeux dans les yeux.”

Terceiro tempo.

Em 1905, o Brasil já era uma República e cá Sarah se encontrava novamente porque estava quebrada, sem um tostão. E percebam a delicadeza da situação: Bernhardt teria que enfrentar o público de quem ela havia falado tão mal no Figaro. Para complicar, a atriz sentia fortes dores no joelho direito, devido às diversas vezes (30 por espetáculo) em que se jogava no chão interpretando Joanna d´Arc. Os biógrafos dizem que em Buenos Aires formou-se um abscesso que necessitou de uma intervenção cirúrgica. Três meses depois da capital portenha, a francesa estava de volta ao Rio. E quem levantou-se no primeiro e segundo atos de La Sorcière de Victorien Sardou pedindo clemência à platéia que a espezinhava por causa das críticas feitas ao país, anos antes? Nem citarei o nome do defensor perpétuo para não parecer perseguição… E mais uma vez, o público terminou aplaudindo-a de pé.

A atriz Sarah Bernhardt e o Brasil.
“Bolada com o Brasil!”

Por coincidência ou karma, o Brasil, em parte, foi responsável pela morte da atriz.

Durante a última encenação da ópera La Tosca (de Sardou) em 1905, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, a atriz pulou de um parapeito cenográfico para cair sobre colchões colocados atrás do cenário, mas daquela vez o funcionário do Teatro Lírico se esqueceu de cumprir a sua função e a francesa machucou gravemente o joelho direito.  Ela nem conseguiu retornar ao palco para receber os aplausos. O acidente causou a gangrena que se desenvolveu em sua perna. Apesar dos apelos dos amigos para que permanecesse no Rio de Janeiro para se tratar, mesmo manca e febril, Bernhardt partiu para os Estados Unidos. Horrorizada com as mãos sujas do médico de bordo, não permitiu que ele tocasse em seu joelho. A situação só piorou e dez anos depois, Sarah foi obrigada a amputar a perna direita em 1915. Mesmo assim, a atriz continuou atuando por mais alguns anos até falecer em Paris em 1923. Brasil… Ame-o ou deixe-o!

A Mangueira honrou a nação brasileira!

O carnaval não é uma festa que pertença a todos os brasileiros. Eu já acreditei nisso – ou fui induzido a – na mais tenra idade. Assim como acreditei que os telejornais e jornais só diziam a verdade – mas eu era criança. E quando criança estudei em colégios públicos – frutos da máxima de Anísio Teixeira de educação gratuita e de qualidade. Se era de extrema qualidade não posso afirmar, mas aprendi inglês e a ler partituras musicais nesses estabelecimentos. E aprendi a conviver com amigos de comunidades carentes. E por deixar que pessoas como eu tivessem alguma consciência social é que Teixeira acabou morto em um poço de elevador em circunstâncias para lá de misteriosas – assim como é um mistério o que tem acontecido com este país nos últimos meses.

Carnaval é a festa da carne, de desejos inconfessáveis, que desde o Império serviam para aliviar as mazelas da população. Período festivo em que negros e pobres paupérrimos vestiam-se de reis. Data em que o próprio Imperador fazia reverências a reis negros para que a farsa aliviasse a pressão social. Afinal não foi este país alcunhado de “ditabranda” por revista de circulação nacional e chamado de democracia racial por artífices da construção nacional?

Para manter-se o equilíbrio social, têm-se alimentado a prática nacional de não resolver as questões profundas e surfar na superficialidade. A mesma superficialidade que ainda afirma que os pilotis de Brasília são áreas de ampla convivência social como as praias cariocas não são subdivididas em classes.

Tupinambás (captura de tela)

Mas para pessoas como eu, “doente dos pés”, Carnaval também é um período de reflexão e imersão. Meu Carnaval não se faz a dançar nas ruas, mas no hábito de assistir aos desfiles pela TV – e de algumas vezes ter ido a ensaios em Escolas de Samba e à Marquês de Sapucaí no Rio para acompanhar a concentração das Escolas, ver os carros alegóricos e os seres humanos sob as fantasias. Quando adolescente eu só queria saber de rock and roll. O tempo me fez ver, mais do que crer, que rock não era apenas rebeldia à esquerda e samba à direita. Compreensão parcial da própria superficialidade que me cercava. Mas ao me libertar desses grilhões que antes me prendiam conheci um país sonhador mas doente, mestiço e racista, de glórias mil e grilhões centenários. E meu catecismo libertador teve seu apogeu nos grandes sambas enredos.

Em 2018, muitos encantaram-se com o samba “Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?” da Paraíso da Tuiuti, mas uma coisa é deixar-se encantar, outra é compreender. Quem sabe se muitos desses encantados não preferiram o encantamento da mamadeira, da escola sem partido, da bíblia e das fake news em detrimento de sua própria essência?

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Assassinos!

A essência dos blocos carnavalescos é a crítica e todo governante teme as seqüelas. O popular desconstrói e destrói. E as Escolas de Samba, estejam ou não rendidas ao poder econômico, à censura das transmissões televisivas, ao corporativismo, nada disso mais importa quando a consciência precisa respirar o seu último ar de dignidade, nada disso mais importa quando o ar está carregado de indignidade. E em momentos farsescos como os que vivemos ameaças são dirigidas aos artistas, aos negros que não aceitam os grilhões, às comunidades carentes submetidas ao regime das balas dos traficantes e dos militares salvadores da Pátria, ameaças ditas nas entrelinhas.

Mas seja por qual motivo for, se por raiva ou pela falta de investimento no carnaval, eu já não quero mais saber, pelo menos a minha e a alma de milhões de brasileiros está lavada pelo Samba-Enredo “Histórias pra Ninar Gente Grande” da Mangueira de 2019.

Duque de Caxias o exterminador (captura de tela).

A melodia não me empolgou como ocorreu com a Tuiuti de 2018, mas tudo o que cerca a composição, sua letra, coreografia, dançarinos, carros alegóricos, a imagética, o momento, tudo somado me atiça o espírito revolucionário, e eu espectador passivo liberto o meu, o seu, o nosso Marighella ao ver a história oficial reduzida a anões (sem culpar os anões, é claro) e índios, negros e mulheres elevados a heróis.

RIO DE JANEIRO, RJ 04.03.2018 – Carnaval 2019 – Desfile da Mangueira. foto: Emiliano Capozoli

A cena do carro alegórico do monumento aos bandeirantes mergulhado em sangue (“O sangue retinto por trás do herói emoldurado” sobre o genocídio de mais de 300 mil índios pelos Bandeirantes) e o patrono do exército mostrado como um assassino sobre cadáveres talvez tenham sido as cenas mais fortes que já tive a honra de ver em um carnaval.

Mônica Benício, viúva de Marielle Franco.

Chorei ao ver Mônica Benício, a viúva de Marielle Franco desfilar altiva na Passarela, mulher guerreira, santificada pela dor, honrada como poucas e envolta por estandartes com o rosto de sua amada.

Um ano após ter sido executada por policiais, e sabe-se se por governantes no poder, Marielle é uma sombra incômoda ao poder estabelecido, uma cusparada na cara dos hipócritas, dos que sambaram ao enredo da Tuiuti e o negaram ao votar.

Ergam os punhos, desfraldem a bandeira.

“Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês.”

Obrigado, Mangueira!

Seja Marginal, Seja Herói!

EUGÊNIO COLONNESE & SERGUEI, O DESENHISTA E O ROQUEIRO, TÃO DIFERENTES E TÃO IGUAIS.

Desde priscas eras, o cartunista Márcio Baraldi tem sido um militante pela preservação da memória dos quadrinhos brasileiros. Começou entrevistando figuras exponenciais – uma lição que toda jornalista conhece: entreviste enquanto é tempo – no Bigorna.net para em seguida prensar as entrevistas em DVD. Alguns ainda questionam a validade da mídia física, livros, CDs e DVDs como se esses formatos não pudessem conviver em paz com as “nuvens”. Renegam o investimento feito em cada um desses lançamentos, seja criando, gravando, editando, prensando e distribuindo. Mas, Marcio, ainda bem, não está nem aí e segue em frente. E isso tudo sem contar como – ainda – é árduo estimular o público a adquirir produções nacionais.

Edy Star, Calanca da Baratos Afins, Marcio Baraldi e Serguei em Sampa (Foto: Bolívia e Cátia Rock)

O tema desta matéria versa sobre dois recentes DVDs da lavra Baraldina: “Na Cama com Serguei” (com sincronística participação do amigo e escritor carioca Paulo-Roberto Andel), o roqueiro-mor-carioca e “Sobrou Alguma Coisa no Tinteiro? – Vida e Obra de Eugênio Colonnese”. Aparentemente são duas figuras distintas. O primeiro, “roqueiro” e o segundo, desenhista. Mas ambos têm muito em comum.

E esta não é apenas uma resenha sobre dois DVDs, mas um texto sobre a vida.

Eu via Serguei em algumas e esporádicas participações na TV e o conheci pessoalmente nos anos 1980 na Rádio Fluminense em Niterói, quando ele havia voltado à ativa em palcos como os do Circo-Voador no Rio. Mesmo que te contem, só quem viveu a virada dos anos 60 para 70 do século passado é que pode ter noção do que foi e como era aquele período. A juventude se dividia entre os que haviam caído na guerrilha contra a ditadura e os alienados, vamos dizer assim, um grupo bem heterogêneo que somava o público de telenovela a cabeludos que viviam em um mundo paralelo. E digo isso porque vi pessoas talentosas se perderem em drogas e falta de noção. Por isso, se o mundo não te afaga, trace você mesmo o seu caminho com sua régua e compasso. Serguei e Eugênio mandaram ver e concretizaram sonhos. Serguei quis ser do rock e largou tudo, desbundou e apertou o botão do foda-se. Colonnese trocou a Itália pelo Uruguai e Argentina para depois desembarcar no Brasil em 1964 e virar mito (esse sim, não o outro).

E nos anos 80, de ônibus – de Niterói para o Rio – Serguei me contou que residia em um apartamento em Copacabana com a mãe idosa. Entendi o que ele havia tentado me transmitir, ou creio ter sido isso, que roqueiro no Brasil é um ser mais ambíguo do que Bowie, glitter como Sidney Magal e que aqui, drogas-sexo e rock and roll é só na quebrada do morro.

Marcio Baraldi e Serguei em São Paulo na Baratos Afins (foto: Leandro Almeida)

Em contrapartida, Colonnese era uma figura inacessível, um ídolo distante, um desenho de banca, até que pelas viradas que a vida dá, o neto dele se hospedou em minha casa há alguns anos e pude relatar ao jovem o quanto o avô dele havia me inspirado.

Não sei quantas histórias desenhadas pelo Colonnese li na vida, mas tenho uma memória afetiva muito forte, os traços limpos, claros, como nunca havia visto no país. E o que nos ligou, ainda mais fortemente, foi a história brasileira em 1972, no sesquicentenário da “Independência”. O governo militar havia lançado um filme sobre Dom Pedro I (filme que gosto até hoje), e os corpos de nossos imperadores retornavam ao Brasil. E somado a tudo isso, tive a oportunidade de comprar as obras de arte da editora EBAL, as quadrinizações de clássicos da literatura e de nossa história – oficial. E como esquecer o Dom Pedro primeiro desenhado pelo Colonnese?

Agora vamos às diferenças.

Serguei não se sente bem sendo brasileiro e o desenhista Colonnese não era brasileiro, mas adotou o Brasil como sua casa. Em uma visita à casa de Serguei em Saquarema, interior do Rio, em 2007, testemunhei que o vocalista deixava o canal Fox News ligado em alto som, o tempo inteiro. Perguntei o por que e ele respondeu: “Só gosto de ouvir inglês!”

Essa – grande – introdução se faz necessária, porque como músico e desenhista sinto-me conectado aos dois personagens de alguma forma. São referências próximas, de altos e baixos, humanos seres divinos, que como todos os artistas da vida, seja músico, ilustrador ou camelô, enfrentam a luta diária pela sobrevivência do corpo, alma e espírito.

Serguei é entrevistado na cama em sua casa-templo do rock por Rodrigo Barros, Janaína Storfe e Paulo-Roberto Andel entre imagens de santos, roqueiros e VHS. Depoimentos sobre Rock and Roll, o passado e a cena gay de Copacabana, entremeados pela bandeira do Fluminense e a cadela Elis. E além da entrevista, o DVD ainda traz um pôster; o bonito e cinematográfico curta “Serguei Íntimo” da cineasta carioca Luciana Cavalcanti; a biografia; discografia e uma galeria de fotos mais o show completo do Rock in Rio em 1991 no Maracanã em que o vocalista pôs toda a galera para sentar e ouvi-lo cantar Summertime.

No DVD sobre Colonnese, Marcio Baraldi entrevista familiares do artista, e pessoas que trabalharam com ele, sempre se dirigindo à câmera como um fã e não como um doutor, um acadêmico. É como uma conversa de bar em que paixões e comentários sobre os nossos artistas favoritos são ditos sem a rispidez e a agudeza das espadas. Não há edições profissionais feitas com verba, mas há empenho, necessidade premente de ter um registro, de mostrar aos garotos que idolatram a Marvel e a DC que tivemos a D-Arte, a Opera Graphica, e a Bloch, entre tantas editoras que investiram pesado em histórias nacionais. Por isso, “Tinteiro” é uma ode à paixão, um elogio amoroso à prancheta, ao nanquim, ao papel, e principalmente a produzir com talento e eficiência. Esta é a lição que o mestre Colonnese nos deixa. Amou, foi amado e distribuiu o amor através de milhares, milhões de páginas que queiram os bons espíritos, povoem a imaginação de outros tantos milhões.

A mensagem deixada tanto pelo desenhista como pelo roqueiro é simples e muitas vezes mal entendida: ame. Apenas isso.

Contatos: marciobaraldi@gmail.com