O MUNDO PóS-PANDEMIA

O retorno não tem sido fácil. É como reaprender a andar… de bicicleta. O pé escorrega.  Ninguém nas ruas e os ônibus lotados. E do meu quadrado vejo alguém tossir na cara de outro e o pau comer. Falso recomeço,  preocupante calmaria. Nem papeis de balas encontro pelo caminho.

Encontro alguém na rua que acredito ter conhecido antes da pandemia, mas não lembro quem é… Vizinha, jornaleiro, atendente… Ergo o braço robótico e aceno miseravelmente para manter as aparências do mundo que se foi. As máscaras literalmente caíram e não faço a mínima questão de revesti-las. Não me importo. Somos sobreviventes. O jogo é duro…

Arranco a máscara lavada e relavada e jogo bem longe. Respiro fundo. O vento me sacaneia e a traz de volta. Dou-lhe as costas. Que fique onde está.

O vírus veio para mudar o que já devia ter sido mudado há tempos. Mas o STF e Deus nada fizeram. Deixaram-nos à míngua entre frases feitas e malcriações. Desumanidades de 600 reais que seriam 200…

Volto rapidamente ao apartamento onde me sinto melhor, mesmo após mais de 3 meses trancado. Ainda guardo os gritos de desespero para mim.

A jovem fumadora de tabaco já não me acena da janela em frente. Agora que tudo parece ter voltado ao normal, ela deve ter preferido normalizar as relações e ocultar suas indiscrições.

Do mesmo quinto andar, ouço o vendedor de pamonha que como relógio suíço passa há anos na porta do prédio às 17:45.

Onde deixei a máscara…?

QUARENTENA DE DESENHOS (de GAEL para papai)

O isolamento social não tem sido fácil para ninguém. Embora que para muitos, a vida parece seguir “quase” normal. Os ônibus, farmácias e os supermercados funcionam. Mas recebo relatos de funcionários sem máscara e rindo de toda a situação. Negação e paranóia. Existencialismo e fanatismo. Sem água, trabalho, e nas favelas a vida segue, como dá, como pode. Parentes de conhecidos meus faleceram de covid-19. Enterrados às pressas sem despedidas e amigos. E isso não é teoria conspiratória.

Muitas vezes, a ignorância é quase uma benção, e também um grande problema. Ignorância no sentido de ignorar, de fazer pouco caso, inclusive da ciência. E como quase tudo na vida, relações sociais interferem em questões profissionais. “Propaganda é a alma do negócio”. Ouvia muito essa frase, mas com o tempo me tornei crítico em relação a esse pensamento que apesar de tão simples, – e óbvio -, também se refere a oportunismo, e a comprar pessoas.

Durante a pandemia, pessoas têm se separado, inclusive casais. Idosos são agredidos, pessoas se desesperam pela falta de dinheiro e pelo confinamento. E também deixam que preconceitos se fortaleçam, como a idosa que agrediu verbalmente uma jovem oriental em um vagão de metrô carioca por “infectar a todos com coronavírus”!

As obras no prédio onde resido não pararam. Serra, poeira e cimento todos os dias em horário comercial. Ruídos que nos lembram que a vida não para. O que me faz refletir, todo o tempo, que para comer e ter energia elétrica para escrever essas reflexões  é preciso haver gente, seres humanos trabalhando. E se expondo ao contágio. É como cair no fogo ou na frigideira.

O mundo enlouqueceu ou saiu do armário? Está mais normal do que nunca, mesmo em sua anormalidade?

Enquanto “celebro” e repenso sobre a vida nesses dois meses de isolamento, desenho todos os dias para o meu filho Gael que só me pede artes relacionadas ao jogo FNAF (Five Nights at Freddy´s). Tive que colocar minhas críticas a jogos de lado… Desenhar para o pequeno Gael de 7 aninhos é tão necessário quanto acordar, respirar e comer. Não me imagino de outra forma. E nem conseguiria… Não tenho todo o dinheiro que precisaria para dar bens materiais ao meu filho, mas tenho uma missão que é dar e receber amor. E nunca, ódio.

O amor não pode parar. É a nossa mola propulsora e moto-contínuo, semente e esperança, vida em movimento. Precisamos amar e sobreviver, pagar contas, cuidar da saúde, mente e espírito, mas também precisamos acreditar no amor, sem sermos ingênuos. Somos humanos e tudo o que é humano é demasiado…  Ou inalcançável. Mas isso não pode nos impedir. Talvez todo esse período sirva para nos desapegarmos de ilusões, para deixarmos a vida – que nos resta – mais fácil. Certamente, para muitos, a vida nunca mais será a mesma. Ou mais do mesmo.

Desenhos trocados entre filho e pai durante o isolamento em 2020
Desenhos trocados entre filho e pau durante isolamento social em 2020.