ENTREVISTA COM LENO

Há quase duas décadas, após comprar o CD “Vida e Obra de Lennon McCartney” entrevistei o compositor e cantor Leno (da dupla Leno e Lilian da Jovem Guarda e depois carreira solo nos anos 1970.

Entrevista publicada originalmente em O Martelo número 9 (novembro de 2007)

Leno Azevedo tem muita história para contar. Egresso da dupla Leno e Lílian (1966) da época da Jovem Guarda, o nosso entrevistado deu uma guinada de 360º gravando o seu terceiro disco solo em 1970, a obra prima “Vida e Obra de Johnny McCartney” produzido pelo autor e pelo ainda desconhecido Raul Seixas. Porém, a gravadora CBS impediu que o disco fosse lançado, acrescentando que a matriz seria destruída. Somente 25 anos após o não-lançamento, as fitas originais foram descobertas e mixadas para lançamento em CD e a última novidade dá conta que o disco será lançado agora nos Estados Unidos. Leno Azevedo mostra aos leitores do Martelo porque faz parte do seleto grupo de artistas da Jovem Guarda, que inclui Ronnie Von e Erasmo Carlos, que conseguiu produzir grandes discos que somente agora estão sendo resgatados pelas novas gerações reescrevendo a história do rock neste país.

A separação da dupla Leno e Lilian foi motivada por uma necessidade artistica ou apenas por desgaste pessoal? A separação ocorreu em um periodo em que vários artistas como Ronnie Von e Erasmo Carlos quiseram (e conseguiram) fazer um upgrade artistico em suas carreiras apesar de não terem obtido sucesso comercial de fato. O que houve de erros e acertos em cada caso segundo a sua análise.

A primeira separação da dupla em 1967 foi por ambos motivos. Ainda éramos muito jovens e a necessidade de maturação artística poderia esperar mais um pouco a questão foi mesmo de desgaste pessoal e uma maneira diferente de encarar nosso trabalho. Quanto ao upgrade artístico do Erasmo e do Ronnie acho que foram muito sinceros, mesmo sendo ótimo o que o Erasmo já vinha fazendo. Ele também atingiu sucesso comercial em várias ocasiões dali pra frente. Acho que tinha a ver com a virada da década. Os anos sessenta foram tão criativos que tínha o desafio de dar continuidade através década que se abria. Minha resposta pessoal foi o ‘”Vida e obra de Johnny McCartney”, infelizmente censurado e aí sim, até mesmo pela CBS por razões comerciais.

Recuerdos

O que diferencia Leno e Lilian de Sandy e Junior? Ambas seriam produtos criados para se adequar a uma necessidade do mercado cantando músicas coordenadas por produtores artísticos e executivos de gravadoras ou não?

Só posso falar por Leno e Lílian, apesar de achar Sandy e Junior muito talentosos e terem ultimamente corrido riscos comerciais pra fazer o que acreditam…Mas nunca fomos fabricados pela gravadora. Nem creio que eles tenham sido – na verdade já chegamos na CBS, a maior do país na época , com Pobre menina e Devolva-me já prontinhas pra serem gravadas. Me lembro que assim que terminamos a sessão de gravação o “Seo” Evandro ( Evandro Ribeiro , nosso produtor assim como de Roberto Carlos, Wanderléa, Renato e seus Blue Caps entre outros ) já veio falando para nós mesmos já irmos escolhendo repertório para gravarmos um Long-Play. Ele sabia que o single ia estourar e acertou. Não conheço no Brasil outro compacto simples que tenha tido dois clássicos tão marcantes. No primeiro LP só tem duas músicas que eu não queria muito gravar… “Desculpas” (Excuses) de uma banda canadense que não lembro o nome, sugestão dele e “Meu Coração Bate”, idéia da Lilian. Esta última era “Can’t you hear my heatbeat” dos Herman Hermits que tinham coisa bem melhores. Em compensação apareceu uma canção inédita de Lennon e McCartney chamada “Ill be on my way” que só era conhecida na Inglaterra com o grupo de Liverpool The Fourmost. Ouvindo hoje percebo como nossa versão ficou melhor e mais pesada, mesmo com os Fevers acompanhando com pressa pra dar tempo de pegar a ponte-aérea pra São Paulo. Foi no mesmo dia que gravamos “Eu não sabia que você existia. E ao contrário do que dizem, a maioria das músicas eram de autores brasileiros na maioria dos discos da Jovem Guarda.

Quem foi o maior responsável (se há algum) para o enfraquecimento da Jovem Guarda no final dos anos 60? Sua própria ingenuidade, a falta de maturidade artistica, Caetano e Gil, Os Mutantes ou o fato de os Beatles terem evoluído?

Acho que teve a ver com a inflação de artistas provocado pelo oportunismo de outras gravadoras que viam ali um filão. Quem usasse cabelo comprido ou calças apertadas era considerado da Jovem Guarda. Mas Jovem Guarda era Rock. Tem sites de Jovem Guarda que colocam Agnaldo Timóteo lá. Ou Odair José (ler entrevista nos arquivos de O Martelo) e Reginaldo Rossi mesmo eles tendo se projetado nos anos 70, bem depois. É paradoxal o pessoal cobrar maturidade de um movimento que tem a palavra JOVEM no nome! O charme e o segredo talvez tenham sido justamente esses, quase hormonais. Quanto à Caetano e tropicália , que me perdoem mas não dava nem pra chegar perto do fenômeno nacional que a Jovem Guarda representava no país todo e em todas as classes sociais e etárias. Uma espécie de beatlemania Tupiniquim. Já a esquerda ortodoxa pertubava mais com seu stalinismo de merda. Já eram chatos desde aquela época. Só não se sabia que quando chegassem ao poder se revelariam mais incompetentes, autoritários e desonestos que seus antecessores. Quanto aos Beatles terem evoluído foi bom pra nós, um estímulo criativo em nossas almas , corações e mentes. Mesmo sendo a ingenuidade de “I wanna hold your hand”, por exemplo, (“Quero afagar sua mão”) tão genial quanto o maduro Sgt. Peppers!

Lennon e McCartney

Apesar de “A vida e obra de Johnny McCartney” ser um trabalho do artista Leno, o vejo e ouço como um trabalho coletivo; produzido por Raul Seixas, teve a Bolha (ou os Bubbles) como banda de apoio e incluiu composições de outros autores. Foi mesmo um projeto coletivo?

Na verdade não foi um trabalho assim tão coletivo mesmo com a participação de outras pessoas. Eu já tinha toda a concepção do disco na cabeça e convidei outros músicos para ajudar a executá-la. O Raulzito que entrara há apenas um mês como produtor da CBS trabalhou na prática como meu assistente de estúdio, já que o Renato Barros – o produtor desde o inicio de minha carreira solo com o hit “A pobreza”- é quem era oficialmente o produtor da gravação. Mas ele não acreditava comercialmente no que ia ouvindo e passou a gastar mais tempo preenchendo as cartelas da loteria esportiva do que participando efetivamente da produção. Então tomei as rédeas da produção no estúdio. O Raulzito porém, teve uma total influência no arranjo instrumental de “Lady Baby” por exemplo e o considero afetivamente o co-produtor. Fez várias letras numa nova direção do que vinha fazendo. Eu o estimulava à partir pra outras odisséias líricas. Uma noite no estúdio ele desabafou que a letra de nossa parceria em “Sentado no arco-Íris “- música minha onde ele desenvolveu a letra a partir da primeira estrofe que eu iniciara – era a primeira letra que ele se identificava e tinha orgulho de ter escrito. Isso foi na hora de gravarmos os backing-vocals e nunca esqueci. No livro “O baú do Raul revisitado” há um manuscrito do Raulzito na pág 170 com um rascunho do projeto de um disco que ele pretendia fazer intitulado “Meus mestres” onde cantaria com um convidado em cada faixa. Fiquei emocionado ao ver meu nome lá pois desconhecia esse projeto dele. Trazer a Bolha (clique aqui para ler entrevista com Renato Ladeira da Bolha) foi também idéia minha que o Raulzito gostou ao irmos juntos assistir um show dos caras no clube Monte-Líbano no Leblon. Eles tinham chegado da Inglaterra com novos instrumentos e tocaram naquele dia um rock “stoniano” chamado “Sub-entendido” que me deixou logo com vontade de incluir no LP. Então os convidei pra virem o estúdio. Acho que eles nunca tinham entrado em um… Aproveitamos pra gravar mais 3 músicas: “Sentado no Arco Íris”, “Por que não” e “Johnny McCartney”, que eles aprenderam na hora em duas noites e saiu muito bom! Os técnicos quase ficaram loucos pois jamais tinham gravado rock naquela pauleira e acharam o som muito sujo. Em breve “Vida e obra de Johnny McCartney” deve sair nos Estados Unidos. Recebi elogio dos técnicos americanos sobre a qualidade do som pra época! Ironias da vida. E sairá em CD, LP Vinil de capa dupla, como eu queria na época. O Marcos Valle caiu de para-quedas no disco graças à uma belíssima canção chamada “Pobre do rei” que ouvi em sua casa numa época em que tive um namoro com a irmã dele. Foi bem insólito ter um ícone da bossa-nova num de disco de Rock, mas ele gostou da idéia e até tocou piano elétrico na faixa. Foi um ato corajoso dele diante do fundamentalismo da mpb.

Em Busca do Sol
LENO McCartney

Em relação a estúdios de gravação você acredita que “A Vida” foi um trabalho feito dentro das melhores condições possíveis? Foi mesmo o primeiro disco brasileiro a ser gravado em 8 canais? Como foi ter Raul Seixas como produtor artístico?

Sem dúvida foi gravado nas melhores condições possíveis em 1970. Fui o primeiro a gravar em 8 canais. Na época, a Philips, concorrente da CBS gravava os Mutantes e a tropicália em 4 canais apenas. Como eu era apaixonado por sonoridades de estúdio (Se comparar o som dos meus discos com outros gravados no mesmo estúdio da CBS na época dá pra entender o que digo) me escolheram como “cobaia” pra ajustar a mesa de som, etc. Adorei a idéia e “Johnny” até hoje tem uma sonoridade única. Com Raulzito no estúdio as coisas rolavam de uma forma mais divertida pois ele tinha um enorme senso de humor, além de dar suas opiniões. Me lembro dele me dando dicas sobre a forma de cantar a letra da nossa parceria em “Johnny McCartney” de uma forma mais irônica. Eu nunca tinha cantado uma letra daquelas que dizia coisas como “Ainda hei de ser famoso um dia / meu nome nos jornais você ai ler / vou ganhar mais de um milhão / comprar o meu carrão cantando na TV”. Era meio constrangedor pois parecia que aquilo era sério quando na verdade era uma gozação com o mito das celebridades. Aquelas sessões serviriam como laboratório para o que ele iria fazer nos anos seguintes..

Você escreveu algumas das canções deste álbum sob efeito de drogas como os Beatles?

Foi lá que experimentamos maconha pela primeira vez e muitas sessões foram hilárias como a de “Sr. Imposto de renda” (atualíssima por sinal)

Por que o nome Johnny McCartney? Por que associar o trabalho diretamente aos Beatles? Resquício do trauma da separação do quarteto?

O título é absolutamente “nonsense”, assim como a capa. Era mais uma gozação com as elucubrações pseudo-intelectuais de uma parcela da “inteligentzia” tupiniquim e seus papos-cabeça.

“Sapato 36” de Raul foi inspirada em “Convite para Ângela” ou as duas são a mesma canção sem o seu crédito?

Realmente “Sapato 36 é “Convite para Ângela” feita anos antes por nós dois, porém com a segunda parte da música e letra refeita pelo Raul. Ele só re-aproveitou o que ele mesmo tinha feito. Poderia ser considerado juridicamente um plágio pois meu nome não consta. Mas eu jamais iria brigar com meu amigo por uma coisa dessas. Ainda mais que o Raul era um cara muito generoso (apesar de cantar ”Eu sou egoísta”).

O quanto você ficou magoado ou teve um daqueles desânimos aterradores quando recebeu a noticia que o LP havia sido tanto censurado artisticamente pelos executivos da gravadora como pela própria censura da ditadura? E se este disco tivesse sido lançado em 1971 e a imprensa e o público não o tivessem compreendido, como você teria se sentido?

Foi bem frustrante ver meses de trabalho irem pro espaço e também pela omissão da CBS, a quem eu já tinha dado tanto lucro com uma série de discos de ouro. Fiquei puto e pedi rescisão de contrato. Depois atendi um convite do Jairo Pires e fui pra Philips, na época do André Midani. Mas para um artista que vinha de grande vendagem com uma canção romântica como “A festa dos seus 15 anos”, não foi à toa que “Seo” Evandro “surtou” quando ouviu o “Johnny”. Ele desconfiou (acho eu) que “Pobre do Rei” era uma indireta pro Roberto Carlos a quem ele então produzia. Por outro lado a Censura oficial achou que era pro Médici. Seis meses depois o ”Seo” Evandro me convidou pra voltar pra CBS, onde eu amava o ambiente e a companhia da turma da Jovem Guarda que continuava cheia de gás mesmo depois do fim do programa de TV. Aceitei a sugestão de retomar a dupla Leno e Lílian. Isso foi em 1972 e gravamos o nosso melhor e menos vendido disco. Em 73 fizemos o último LP com um repertório ruinzinho escolhido pela gravadora pela primeira vez, mas com uma boa vendagem. Mas preferimos separar a dupla de novo, o que continuou acontecendo através de encontros e desencontros de comemorações do movimento. A

Depois dessa fase você caiu no suingue black de volta à dupla com “Leno e Lilian” (CBS, 1972). Você gostou do trabalho ou sentiu-se meio obrigado a aceitá-lo em razão do mercado da época que investia no som black nacional? Há alguma canção deste LP em particular que mereça ser citada? Como era a sua relação com Lilian Knapp nesta época?

Não vejo esse disco particularmente como um disco black Não foi concebido nesta direção, mas talvez tenha rolado inconscientemente. Considero o melhor disco da dupla, onde fizemos nossos melhores vocais em estúdio. Tem 4 pérolas inéditas do ainda chamado Raulzito (estamos em 1972) inclusive “Objeto Voador”, que mais tarde ele gravaria como S.O.S. Mas olha o clima:eu não quis gravar nada de minha autoria para a Lílian não reclamar que eu estava faturando mais direitos autorais do que ela, já que eu era o produtor com total liberdade dada pela gravadora para escolher o repertório. Por falar em generosidade do Raul como ele já tinha 3 músicas neste LP colocou o nome da Lilian na versão que ele fez à meu pedido para “Day After Day” do Badfinger: “Dias iguais”. E que ela, aliás, aceitou muito bem, obrigado. No todo foi um bom trabalho, incluindo uma regravação da bela “Esqueça e perdoa” do Getúlio Côrtes (irmão de Gerson King Combo. Ele está na capa de “Vida e Obra de Johnny McCartney”. Ler entrevista com Combo nos arquivos de O Martelo).

“Meu Nome é Gileno” de 76 é outro trabalho que impressiona. Apesar da qualidade artistica, o disco não foi um recordista de vendas. Passou pela sua cabeça dar a sua carreira por encerrada? Que histórias você pode contar sobre a gravação/promoção deste disco e sobre os anos 70? Foi neste período que você foi viver nos Estados Unidos? Por desilusão? Para dar um tempo, se renovar?

“Meu nome é Gileno“ tinha uma ponte com “Vida e obra Johnny McCartney” inclusive com a inclusão de “Grilo City”, que já falava da violência urbana carioca e fora censurada em 1971 (originalmente” Não há lei em Grilo City”). Regravei em 1975 e saiu em 1976. Um longo processo de gravação e regravações até chegar no ponto sonoro que eu queria. Me recordo de entrar pelo horário de gravação de outros colegas de gravadora e deixar o Roberto (Carlos) esperando no estúdio enquanto eu terminava de colocar voz em “Grilo City”, e ele conversava com seu advogado. Ainda bem que não fui processado por abuso de horário! Todos torciam por um final feliz para que pudessem fazer seus discos!! Rolaram experimentos como usar dois bateristas: Paulinho Braga e Lourival (Hoje na banda do Roberto), com vazamento controlado nos canais de guitarras e baterias dando uma impressão de disco ao vivo. Tinham grandes músicos participando porém novamente as rádios estranharam e poucas tocaram. Nessa época nem rolava jabá. Apenas em São Paulo a sofisticada Excelsior Fm tocou várias faixas. Tinha a música “Jovem Guarda” que é uma das minhas composições favoritas. Mas eu já não estava nem aí para “timing” de mercado ou o que era ou não comercial para o momento. E fiz outro disco adiante do tempo. Virou minha especialidade, como esse novo que estou lançando, “Idade Mídia”, que pelo jeito só vai ser reconhecido daqui a uns dez anos (!?). Mas jamais pensei em desistir do meu verdadeiro ofício por causa da ignorância alheia. Ao contrário, aquilo me provocava. Fui para os Estados Unidos na época do Jimmy Carter, onde fiz um single pela Shellter records com o produtor do Tom Petty e Procol Harum (de A whiter shade of pale”) o Denny Cordel. Tinha até o Jim Keltner, batera do John Lennon e Bob Dylan na gravação, ou músicos da banda Chicago curtindo meu trabalho. Essas coisas não tem preço e valem muito mais do que sucessos atuais fabricados à base de jabá.

Entrevista com o compositor e cantor LENO em 2007.

É fato que um ser humano deve plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho?

É! Atualmente com o aquecimento global nunca foi tão necessário plantar árvores , ainda mais com a estupidez da queima da Amazônia e desflorestamento da mata Atlântica. Caetano tem razão quando diz que “Somos uns boçais”. Falo nesse tema em “Debaixo do sol” do novo CD “Idade Mídia” (www.leno.com.br) O livro já estou escrevendo. E o filho, minha melhor obra já está tocando muita guitarra solo e compondo muita coisa interessante na banda R.Sigma. Aliás , foram escolhidos entre mais de 60 bandas cariocas para representar o Rio de Janeiro no festival MADA em Natal em maio passado onde arrasaram. Estão agora em estúdio gravando rock do bom e com personalidade própria. Méritos próprios, não me meti. Só quando ouvi foi que caí pra trás!!!

Você ainda tem prazer de cantar e gravar discos até hoje? Como produtor e compositor dos seus novos discos (independentes) como você analisa o mercado atual com tantas mudanças estéticas e tecnológicas? Fazer música perdeu a magia ou este prazer se mantêm parcialmente intacto?

O prazer da música jamais me abandonou, só aumenta porque só ouço o que gosto. Quase não ouço rádio, onde outros é que escolhem o que a gente vai ouvir. Ainda mais com o jabá mandando. Quando não estou gravando ou fazendo shows e olho em volta – aqui e lá fora – penso: mas que merda de cenário com ídolos fabricados em reality shows e american idols, rocks evangélicos onde as cantoras quase têm orgasmo com Jesus. Mas a força que a música em minha vida é muito maior do que isso tudo e quando subo no palco ou ouço meus discos favoritos, no momento certo, meus grandes ídolos como os Beatles, Beach Boys, James Taylor, Stones ou um Elvis dos anos 50, além dos meus artistas nacionais, mando tudo pro inferno e dá uma tesão musical que dispensa qualquer viagra!

MOTIM 14 e 15 DE MAIO 22

Carlos Lopes no MOTIM 2022 em Brasília no sábado 14 e domingo 15 de Maio com LPs, CDs, quadrinhos e camisetas. 10h às 18h. Entrada franca.
Conic - Setor de diversões Sul, próximo à Rodoviária do Plano Piloto, Brasília.
TUPINAMBAH 2

MOTIM 2022 Carlos Lopes estará presente no MOTIM 2022 em Brasília no sábado 14 e domingo 15 de Maio com LPs, CDs, quadrinhos e camisetas. O Mercado de Produção independente estará aberto ao público das 10h às 18h. Entrada franca.

Conic – Setor de diversões Sul, próximo à Rodoviária do Plano Piloto, Brasília.

Mais de oitenta mesas com trabalhos de artistas da Bahia, Pernambuco, Sergipe, Goiânia, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Distrito Federal.

https://youtu.be/uM6ENb_9SxM

Entrevista com Marcolino Jeremias sobre anarquismo e o livro “carlo e anita aldegheri”

Esta entrevista foi publicada, editada, na revista Tupinambah 2.

“O anarquismo brasileiro não vale nada!” Para cunhar tal comentário somente alguém que tivesse muita moral. E essa pessoa se chamava Carlo Aldegheri, anarquista italiano que se refugiou no Brasil, após a segunda guerra, com a companheira Anita. O militante Marcolino Jeremias, atuante no movimento anarcopunk , empenhou-se para que o livro “Carlo & Anita Aldegheri: Vidas Dedicadas ao Anarquismo” recontasse – ou contasse – essa incrível história. Que poucos conhecem.

Anita & Carlo

No prefácio do livro, o coletivo editorial de “Vidas Dedicadas ao Anarquismo” levanta duas possibilidades para o apagamento histórico do casal: poderia ter sido proposital (pelas opiniões polêmicas do Carlo) ou pelo completo desconhecimento dos jovens em relação aos mais velhos e um certo descuido do anarquismo em preservar a sua própria história.

A entrevista com Marcolino elucida várias questões.

1 – O que é o anarquismo?

O anarquismo é uma ideologia socialista e revolucionária, cujas bases se definem a partir de uma crítica a todas formas de dominação, defendendo uma transformação social que permita a substituição de um sistema de coerção por um sistema de autogestão social protagonizado diretamente pelas próprias pessoas. Enquanto as outras vertentes do socialismo priorizam a luta contra a dominação econômica, o anarquismo enfatiza que a luta pela transformação radical da sociedade deve acontecer, ao mesmo tempo e com igual vigor, em todas as esferas de dominação: econômica, política, cultural. Isso fez com que historicamente o anarquismo desenvolvesse uma vasta tradição na luta contra a dominação de classe, de gênero, de raça e imperialista. Esse é o ponto principal que distingue o anarquismo do socialismo, e que, ao meu ver, torna o anarquismo mais radical do que qualquer outra vertente do socialismo.

Em outras palavras podemos dizer que o anarquismo acaba com a organização social onde um indivíduo ou grupo manda em todos os outros, dando lugar a uma nova organização social onde cada um tem direito à opinar sobre os rumos da sociedade em que vivemos e, acima de tudo, total liberdade para escolher como vai viver nessa nova sociedade. No anarquismo não há hierarquia, exploração, coação física, monopólio nas decisões sociais e também não há relações de mando e obediência. Nos regimes de governo representativos (como o que nós vivemos), as coisas funcionam exatamente ao contrário, o indivíduo geralmente tem que abdicar do seu modo de vida, por uma série de imposições (necessidades econômicas, falta de estrutura e recursos, etc…) para adaptar-se aos padrões impostos pelos aparelhos de poder. Já no anarquismo existe um equilíbrio entre o meio social e o indivíduo.

Todo mundo deve ter o direito de viver sua vida da maneira que quiser e deve ter assegurado os meios necessários para fazer isso. Só quem sabe o que é melhor para uma pessoa é a própria pessoa. As pessoas se reúnem em grupos e decidem entre si o que é melhor para todas. Essa forma de organização anarquista chama-se autogestão. A autogestão significa auto-governo, ou seja, governo das pessoas pelas próprias pessoas, sem ninguém para liderá-las ou dizê-las o que podem ou não fazer. Essa forma de organização faz com que as riquezas produzidas pela sociedade fiquem diretamente nas mãos de quem pertencem, ou seja, de seus produtores.

O anarquismo não quer o poder centralizado, pois é incompatível com ele. Sob o ponto de vista anarquista, todo aquele que visa o poder sobre seus semelhantes é um inimigo da liberdade dos mesmos. Se alguém quer mandar em você, quer dizer que essa pessoa quer te privar de tomar decisões sobre sua própria vida, ou seja, essa pessoa quer te escravizar.

O anarquismo propõe uma transformação social com base nas organizações sociais e populares existentes hoje em dia. Em outras palavras, o anarquismo propõe uma revolução que inicialmente se dará dentro das próprias pessoas e nos pequenos meios sociais em que elas vivem (no ambiente familiar, na escola, no trabalho, com os amigos, conhecidos e etc…). Se as pessoas pararem e decidirem que não serão escravas dos governos e que querem se organizar para ser livres, a liberdade estará a um passo delas.

2 – O que você sentiu – e que decisões tomou – ao se dar conta que o casal Carlo e Anita morava em uma casa em frente ao ponto de ônibus no Guarujá para o qual você seguia todos os dias, sem que você soubesse?

Quando eu descobri isso eu quase cai para trás! Mas até chegar aí, levou um longo tempo…

Eu comecei a participar efetivamente de grupos anarquistas na minha região em 1994, quando eu tinha 17 anos. O Carlo Aldegheri faleceu aos 93 anos, no dia 4 de maio de 1995, infelizmente eu não tive tempo hábil para conhecê-lo nesse quase 1 ano…

Quando ele morreu, um amigo nosso de Cubatão (Moésio Rebouças) nos mostrou umas fotos do Carlo e da Anita (que ele havia recebido pelo correio), perguntando se nós, por ser do Guarujá, não conhecíamos ele. Eu e minha ex-companheira (Liana Ferreira) respondemos que não, porém, ficamos intrigados com o fato de um ex-combatente da guerra civil espanhola ter vivido no Guarujá e ninguém saber absolutamente nada sobre isso.

Anita Aldegheri e Marcolino em 2 11 2004

Avançando o tempo um pouquinho, no dia 20 de maio de 1998, aos 71 anos, morria Jaime Cubero. A morte desse outro companheiro anarquista que morava em São Paulo e que, de certa forma, era bem mais próximo dos jovens libertários daquele momento e que influenciou muito os punks de São Paulo, em especial, os que formariam o Movimento Anarcopunk, pegou muitos de nós de surpresa. Para a juventude libertária foi uma perda irreparável pois o Jaime Cubero era uma pessoa bastante amável, acolhedora e extremamente paciente com os jovens (muitas vezes inconseqüentes) que o procuravam. E era com o Jaime que a gente tirava nossas dúvidas sobre a história e a teoria do anarquismo. Nesse momento, ao perceber que a finitude de nossos velhos companheiros era bem mais próxima do que esperávamos, e que a história desses lutadores poderia cair no completo apagamento, eu, a Liana, o Rodrigo Rosa e o Leandro Ramos nos mobilizamos para entrevistar alguns desses velhos companheiros.

Na verdade, o Rodrigo e o Leandro haviam entrevistado o Jaime Cubero, seis meses antes dele falecer. Foi a última entrevista dele. Depois entrevistamos o Edgar Rodrigues (Rio de Janeiro) e o Diego Giménez Moreno (São Bernardo do Campo). Posteriormente essas entrevistas formariam o livro “Três Depoimentos Libertários” lançado pela Editora Achiamé, do Rio de Janeiro, em junho de 2002.

Ainda em 1998, dentro dessa nossa empreitada de procurar os companheiros mais velhos, fomos no Centro de Cultura Social de São Paulo (entidade que reunia os militantes anarquistas mais velhos e na qual o Jaime Cubero fez parte até seus últimos dias de vida). Procuramos o companheiro que assumiu as funções do Jaime Cubero (prefiro não citar o nome dele), e perguntamos pelo Carlo Aldegheri, se ele havia deixado esposa, filho ou algum parente que pudesse nos dar algum tipo de informação biográfica. Escutamos como resposta que o Aldegheri não tinha filhos e que o seu único parente era a esposa que havia falecido antes que ele. Depois dessa resposta desanimamos…

Algum tempo depois organizamos uma atividade antimilitarista em Santos, na qual tivemos a presença de um companheiro de Campinas (Ferdinando Ramos), que acabou nos revelando que foi ele quem tirou aquelas fotos do Aldegheri e enviou para nosso companheiro de Cubatão. O Ferdinando ainda nos disse que o Jaime Cubero havia passado o endereço do Carlo Aldegheri para ele entrevistá-lo. Ao chegar na casa do Aldegheri, o Ferdinando disse que foi recebido pela Anita Aldegheri, mas que o Carlo já estava tão doente que ele não conseguia falar. Vendo aquela triste situação o Ferdinando arrumou o Carlo na cama, beijou o seu rosto e tirou as fotos dele e da Anita.

Duas semanas depois o Jaime Cubero ligou para ele e informou o falecimento do Carlo Aldegheri. Ferdinando nos disse que, ao  contrário do que fomos informados, o Carlo Aldegheri havia falecido primeiro que a Anita. E nos deu o endereço da casa dos Aldegheri.

Ao chegar no endereço, constatamos que a casa deles, que tanto havíamos procurado, se localizava exatamente no ponto de ônibus que eu utilizava todos os dias. Porém, no local, só achamos uma pastelaria e um consultório de dentista. Eu desanimei novamente… A Liana teve a ideia, por se tratar de um sobrenome diferente, de procurar o nome Aldegheri, numa lista telefônica e assim encontramos um novo endereço.

Em dezembro de 2001, fomos nesse endereço e, depois de todos os obstáculos, encontramos a Anita Aldegheri, aos 95 anos de idade, extremamente lúcida (descobrimos que depois da morte do Carlo, ela havia mudado de endereço). Ainda conseguimos conviver com ela cerca de 13 anos, até o falecimento dela em 31 de março de 2015, quando ela morreu aos 108 anos de idade. Foi a partir desse encontro que conseguimos lançar, em novembro de 2017, o livro “Carlo & Anita Aldegheri: Vidas Dedicadas ao Anarquismo”.

3 – O livro descreve as razões da ruptura entre Carlo e o movimento anarquista brasileiro. Fale sobre as suas conclusões e os por quês, que me parecem claros no prefácio do livro ao citar que “o esquecimento parece ter sido intencional porque o casal era muito mais prático do que teórico.”

Em primeiro lugar é preciso lembrar que o anarquismo no Brasil desde a sua gênese sempre foi alvo de uma intensa repressão seja pelo governo, seja pelo clero, posteriormente pela extrema direita e, em alguns casos, até mesmo pelos partidos de esquerda.

Quando chegamos nos anos 60, os grupos anarquistas existentes não tem o mesmo número de militantes que outrora, pois ainda estavam se recuperando da ditadura do Estado Novo e do Getúlio Vargas (que estava mais para ‘mãe dos ricos’ do que ‘pai dos pobres’). Então, quando é implantada a ditadura militar em 1964, os anarquistas voltam para a atuação na clandestinidade o que, agravado pelo contexto político do período, dificulta que a juventude venha a aderir ao movimento nos anos de 60 e 70.

Desta forma, quando chegamos na reabertura política e a retomada pública de espaços anarquistas, temos um hiato geracional no anarquismo brasileiro. De forma que nos anos 80 e 90, ou você tinha militantes na faixa de seus 60 e 70 anos, ou militantes na faixa de 20 para baixo. Nessa época não havia militantes na faixa dos 40 anos (salvo exceções pontuais) para ajudar no diálogo entre os mais velhos e o mais novos.

Essa lacuna entre as gerações libertárias nos anos 80 e 90, além do conflito natural característico pela diferença das idades, contribuiu bastante para que os mais jovens desconhecessem por completo não só a própria história e teoria do anarquismo, como desconhecessem a própria trajetória desses militantes mais velhos que ainda estavam vivos.

Nas duas únicas entrevistas que temos do Carlo Aldegheri (que estão publicadas em nosso livro), uma de 1991, e a outra de 1994, poucos meses antes dele falecer, o que nos chama a atenção é que nenhuma delas foi realizada por ninguém do movimento anarquista. Se não fossem esses pesquisadores de instituições ligadas ao Estado, muito provavelmente não teríamos nenhum registro do Carlo Aldegheri narrando sua própria história.

No prefácio do livro, nosso coletivo editorial, levanta duas possibilidades para o apagamento histórico da trajetória militante do Carlo e da Anita Aldegheri: poderia ser proposital (pelas opiniões polêmicas do Carlo) ou poderia ser pelo completo desconhecimento dos mais jovens em relação aos mais velhos e um certo descuido do anarquismo em preservar sua própria história.

Pessoalmente, eu acredito que seja descuido por parte dos mais jovens. Os velhos muitas vezes são esquecidos pela juventude na nossa sociedade, isso se reflete em muitos grupos sociais, e também em ambientes que se dizem libertários. Isso é um equivoco que precisa ser modificado. Fico feliz ao ver, que nos meios anarquistas sérios hoje em dia, exista um enorme esforço para a preservação e divulgação de nossa trajetória e herança política. Cito como exemplo disso, as várias bibliotecas e espaços anarquistas que também funcionam como centro de documentação e organizam grupos de estudos e inúmeras publicações e pesquisas que resgatam a nossa história.

Antônio Martinez organizando o arquivoacervo do movimento anarquista de São Paulo em Julho de 1982, final da ditadura militar

No caso do Carlo e da Anita Aldegheri, o que me leva a crer que esse apagamento não foi proposital, é o fato de alguns outros anarquistas da mesma geração dos Aldegheri também não terem suas trajetórias devidamente registradas. Poderia citar uma pequena lista aqui, porém, citarei apenas um caso que para mim também é emblemático. Antônio Martinez (1915 – 1998), militante anarquista de São Paulo, foi membro da histórica Federação Operária de São Paulo (FOSP) e chegou a participar do conflito armado da Batalha da Sé em 7 de outubro de 1934, quando antifascistas colocaram os integralistas para correr da Praça da Sé, debaixo de tiros. O velho Martins, como todos o chamavam carinhosamente, estava sempre ao lado do Jaime Cubero, conversando com os jovens, indicando leituras, nos presenteando com periódicos e brochuras raras, incentivando os mais jovens… Era uma figura sempre presente e conhecida da juventude anarquista dos anos 80 e 90. Teve uma trajetória extremamente ativa e relevante. Morreu 5 meses depois que o Jaime Cubero, aos 83 anos de idade, no dia 28 de outubro de 1998. Ninguém nunca o entrevistou. Aspectos de sua trajetória política e social jamais serão conhecidos…

Além disso, outro fato que corrobora a minha opinião, é de que essas duas entrevistas que existem com o Carlo Aldegheri foram indicações feitas aos pesquisadores acadêmicos via Centro de Cultura Social de São Paulo e Jaime Cubero.

Mas a bem da verdade, é preciso ressaltar, que a família Aldegheri chegou a financiar uma gráfica e também doou um terreno no Guarujá, para o movimento anarquista em São Paulo, que foram mal administrados pelos companheiros e depois foram devolvidos para o Carlo e a Anita. Os companheiros mais velhos que conseguimos perguntar sobre esses episódios nebulosos, se recusavam veementemente em falar sobre esse assunto.

Em tempo: Recentemente tivemos a grata surpresa de receber uma mensagem de uma jornalista de Santos que chegou a entrevistar o Carlo Aldegheri em 1988. Atualmente ela vive no Canadá e muito em breve ela vai nos repassar a entrevista que ela fez. Quem sabe não temos uma nova edição ampliada do livro vindo por aí?

4 – Carlo lutou na guerra civil espanhola contra os fascistas e foi preso com Sandro Pertini, o socialista italiano que tornar-se-ia presidente italiano entre 1978 e 1985. Ele participou da história real e não teórica. Como alguém que sobreviveu à décadas de campos de concentração e prisões antes de imigrar para o Brasil, permaneceu tão consciente sobre o mundo e as pessoas até o fim da vida, sem nunca ter aberto mão do anarquismo?

Carlo Aldegheri após passar pela experiência da guerra civil espanhola, passou por várias prisões incluindo campos de refugiados e campos de concentração sob domínio fascista e nazista. Em 1943, Carlo consegue fugir do campo de concentração fascista de Renicci di Anghiari. Seria compreensível para qualquer pessoa nessas circunstâncias, que ela procurasse um abrigo e se afastasse da militância até seu nome ser esquecido pelas autoridades. Mas ao invés de ter essa atitude, surpreendentemente, Carlo Aldegheri no momento seguinte a sua fuga, já retoma a sua atividade atuando clandestinamente no Comitê de Libertação Nacional de Verona. E Carlo não estava sozinho, companheiros anarquistas como Alfonso Failla, Randolfo Vella , Francesco Viviani, Giovanni Battista Domaschi, Guglielmo Bravo, Emilio Silvio, entre muitos outros, estavam juntos nessa ação.

Aqui no Brasil, por exemplo, temos a admirável trajetória do anarquista negro Domingos Passos que devido sua intensa atuação social era chamado acertadamente  pelos seus contemporâneos de ‘Bakunin Brasileiro’. Em uma de suas muitas prisões, Domingos Passos foi enviando para a colônia penal de Clevelândia, no município do Oiapoque (Amapá) – um verdadeiro campo de concentração criado por Artur Bernardes em 1924 – para morrer lá à míngua. Na colônia penal de Clevelândia, também conhecida como ‘Inferno Verde’ morreram, entre outros, os seguintes anarquistas: Pedro Augusto Motta, Nino Martins, Nicolau Parada, José Maria Fernandes Varela e José Alves do Nascimento. Domingos Passos consegue escapar da Clevelândia e, ao invés de fugir das autoridades, a primeira coisa que faz é procurar redações de jornais e participar de comícios operários públicos para denunciar o verdadeiro extermínio que estava se passando naquele campo de concentração brasileiro.

Então, para responder a sua pergunta, eu acredito que o Carlo e a Anita Aldegheri fizeram parte de uma ilustre geração de lutadores que tiveram sua personalidade formada por um forte rigor ético, pela auto disciplina, pela responsabilidade, pelo compromisso, pela dedicação e pela coerência entre a prática e a idéia que se defende. Fizeram parte de um conjunto de pessoas que generosamente ofereceram o seu próprio sangue para fertilizar o solo de uma nova terra, sem mestres, nem escravos.

Maria Lacerda de Moura

A própria anarquista brasileira Maria Lacerda de Moura (1887 – 1945) afirmava: “Recusar ser instrumento de iniqüidades. Sacrificar o corpo, se preciso for, afim de não sacrificar a razão, a liberdade interior ou a consciência”. Para esses anarquistas, a solidariedade e o compromisso militante eram muito mais do que uma palavra morta.

5 – O que a burguesia nacional de 1917 difere da de 2019 se ela, ainda permanece escravocrata, latifundiária, e continua a temer as palavras Greve e Operário?

Decorrido mais de um século desde 1917, podemos dizer que os opressores e os oprimidos são compostos praticamente pelos mesmos elementos sociais.

Porém, o controle, a manipulação e a exploração das classes mais vulneráveis de nossa sociedade pela elite, mudou de forma e precisamos estar atentos à essa mudança se queremos combater essa tragédia social de forma eficaz.

No “Searching For The Light” você (Carlos Lopes) brilhantemente escreveu: “Métodos sutis valem mais do que mil cassetetes”. Um pouco depois a banda anarcopunk de São Paulo Metropolixo escreveu: “Tiraram nossas armas através da violência, hoje nos dão armas e nos tiram a consciência”. Para mim são letras que se completam e que nos dizem muito sobre a nossa atualidade.

Antes os libertários tinham que enfrentar o governo e suas instituições repressivas concretas: o militarismo, o clero, as prisões, as deportações, o inimigo estava bem declarado. Hoje os métodos de controle e manipulação são muito mais sutis, eles permeiam toda nossa vida em sociedade a partir do momento em que acessamos a internet, o celular, as redes sociais. Hoje uma fake news no whatsapp repetida mil vezes, tem muito mais credibilidade popular do que uma tese comprovada cientificamente. Um verdadeiro pesadelo goebbeliano. Temos que atualizar nossas formas de luta para combater essas novas ferramentas da ditadura capitalista.

Nas manifestações contra a reforma da previdência social e a perda de direitos trabalhistas que houveram em 2017, muitas pessoas da periferia que estão muito tempo desempregadas ou trabalham informalmente questionaram que elas já viviam sem nenhum direito trabalhista e que, portanto, para elas não fazia sentido lutar para manter um direito no qual elas nunca poderiam usufruir. Que talvez, se fosse uma manifestação contra o desemprego, elas participariam.

Segundo os últimos dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), atualmente mais de 11 milhões de brasileiros trabalham sem carteira assinada e quase 5 milhões fazem parte dos “desalentados”, aqueles brasileiros que desistiram de procurar emprego. Como dialogar com essas pessoas que não estão no mercado formal de trabalho e que fazem parte da classe social mais precarizada que existe ? Na minha opinião, esse é o grande dilema para a luta social hoje em dia. Se chegamos numa favela brasileira hoje em dia e vamos conversar com a juventude, muitos não vão se enxergar como classe trabalhadora, menos ainda como operários. Porém, é muito provável que se entendam como ‘periferia’.

Não acredito que devemos pegar o método de organização de nossos antepassados e aplicá-lo mecanicamente nos dias de hoje. Devemos estudar o contexto social de hoje em dia e também as falhas que tivemos no passado. A maior lição que os lutadores do passado nos deixaram é que eles souberam perfeitamente dialogar com as classes mais injustiçadas de sua época e souberam encaminhar propostas práticas que vinham de encontro com as necessidades materiais dessas pessoas. Se queremos avançar, devemos ter a sensibilidade de falar a mesma língua do povo.

6 – Na mesa do CCS no Brás em SP em dezembro de 1987, Carlo questionou os punks presentes. Comente cada uma das afirmações de Carlo a partir de sua vivência no movimento anarco-punk e com as conversas com Anita. Creio que será bastante útil para conscientizar.

A – Carlo cobrou os punks pelo uso de indumentária militar como calças, coturnos e camisetas camufladas (o mesmo serve para metaleiros) e disse ser uma ofensa o uso da suástica, seja para qual propósito for.

Nos anos 80 e até mesmo no começo dos 90, era muito comum uma certa confusão ideológica. Havia zines que colocavam numa página um símbolo anarquista e na outra um símbolo nazista. Também era comum ver um punk que se dizia anarquista numa manifestação contra o racismo hoje, e no mês seguinte ele ter aderido aos skinheads white power. As pessoas falavam sobre anarquismo, porém, poucas sabiam realmente do que estavam falando. Nessa atividade mencionada, o Carlo estava tentando alertar os punks presentes para suas contradições. Devemos lembrar que o Carlo sempre foi um antimilitarista, ele largou o serviço militar obrigatória na Itália e fugiu para a França. E depois de toda a experiência dele na guerra civil espanhola e como prisioneiro durante a segunda guerra mundial, esse sentimento antimilitarista só aumentou nele. Sobre a suástica, é a mesma coisa. Carlo foi preso em campos de concentração controlados por nazistas, ele viveu de perto o horror nazista. Pelo menos um dos seus companheiros, pelo que conseguimos averiguar, o italiano Giovanni Battista Domaschi foi morto no campo de concentração de Dachau em 1945.

B – “Resolve o problema social quem tem uma organização. Com música não se resolve o problema social existente. A música é superficial. Tem que ir para dentro da fábrica.”

Mais uma referência a vida pessoal do Carlo Aldegheri. A revolução espanhola não foi algo que se deu espontaneamente em 1936. O movimento anarquista na Espanha foi se preparando desde o final de século XIX, para esse momento. Desde 1870, com a fundação da secção espanhola da Associação Internacional dos Trabalhadores, passando pela revolta anarquista de Jerez de la Frontera em 1892, pela fundação da Escolas Modernas e pelo fuzilamento do seu principal propagandista Francisco Ferrer em 1909. Com a fundação em 1910 da Confederação Nacional do Trabalho (CNT), passando pela fundação em 1927 da Federação Anarquista Ibérica (FAI) até chegar no massacre de Cajas Viejas em 1933 e na insurreição de Asturias em 1934. A revolução espanhola foi fruto de uma forte organização social construída diretamente pelos próprios trabalhadores no chão das fábricas. É importante frisar que havia um trabalho cultural e artístico muito fecundo nesse período também, porém, ele advinha do trabalho de base e não o contrário.

C – “Se quiser ser contra a burguesia, coloquem-se 3 ou 4 bem organizados e vão assaltar bancos.”

Essa é uma questão muito interessante que inclusive eu não coloquei no livro por falta de documentos mais concretos, mas, que me intriga muito até hoje em dia. Alguns anarquistas mais velhos que eu entrevistei, me afirmaram que o Carlo Aldegheri havia atuado como anarquista expropriador, porém, que ele não gostava de falar sobre isso. O anarquismo expropriador foi uma denominação dada a certos grupos de afinidades anarquistas que através de roubos e assaltos a bancos obtinham recursos econômicos para financiar as atividades do movimento anarquista. Era um meio ilegalista de financiar o movimento anarquista e operário, nunca foi utilizado como forma de sustento individual. Geralmente eles se chamavam expropriadores porque consideravam que os verdadeiros ladrões advinham da classe burguesa. Nunca consegui um documento que comprovasse essa passagem do Carlo Aldegheri pelo anarquismo expropriador, porém, essa passagem sempre me chamou muito a atenção. Assim como na entrevista que ele deu em 1994, onde o Aldegheri afirma: “Perseguiram os assaltadores de banco, ora, os assaltadores de banco às vezes tem mais dignidade que qualquer deputado, porque pelo menos arriscam a vida para assaltar um banco”.

7 – O comentário de Carlo sobre o Brasil – feito nos anos 90 – ainda é pertinente? E segundo você, por que o brasileiro ainda é tão acomodado?

“Aqui se fala de futebol, centro esquerda, centro direita, carnaval e cocaína. Por isso não fiz um grande amigo em 40 anos de Brasil.”

O Carlo e Anita Aldegheri participaram de uma das maiores experiências de coletivização da história da humanidade que foi a revolução espanhola. Cerca de 75% da industria e 70% da áreas rurais foram coletivizadas pelos próprios trabalhadores. Grandes complexos industriais funcionaram de forma autogestionária com aumento de produção e com muito mais eficiência que no sistema capitalista. Os antigos patrões que não fugiram no decorrer dos acontecimentos, tiveram que trabalhar lado à lado com os demais operários e camponeses. Os serviços públicos como transporte, energia, saneamento básico, educação e lazer foram todos coletivizados. A central sindical anarquista, a Confederação Nacional do Trabalho (CNT) representava a maior força social da Espanha e reunia mais de 1 milhão e 500 mil trabalhadores. Muitas comunidades simplesmente aboliram o dinheiro. Depois das experiências revolucionárias concretas que ocorreram na Espanha, ninguém jamais poderia dizer que o anarquismo é uma utopia impraticável.

Depois de passar por essa experiência única, sofrer com as perseguições fascistas durante a segunda guerra mundial e chegar no Brasil nos anos 50, encontrar um movimento anarquista fragilizado pelas décadas de repressão e de certa forma viver isoladamente, inclusive, de uma convivência mais próxima dos demais companheiros, eu acredito que, psicologicamente, isso deve ter abalado profundamente o casal, o que se refletia em seus comentários extremamente críticos, porém, verdadeiros. Por essa razão, mesmo quando eu não concordo 100% com algum comentário deles, eu procuro entender as razões desses comentários com base na própria experiência de vida dos Aldegheri.

Eu não acho que o brasileiro é apático ou conformista por natureza, pelo contrário, eu acredito que a população brasileira reflete os séculos de deformação de caráter e os preconceitos atávicos colonizadores que lhes são impostos desde o momento de nascimento, passando pela ambiente familiar e escolar, até chegar na vida adulta em meio as pressões econômicas, políticas e religiosas que vão moldar a sua personalidade. Eu acredito inclusive que o brasileiro é rebelde, porém, geralmente ele é rebelde contra a sua própria classe, contra o seu próprio povo e sua própria história. Isso não acontece espontaneamente, o brasileiro é completamente manipulado (hoje mais do que nunca) pelos mecanismos de controle social que coordenam as tecnologias de comunicação e o meios de informação de forma que as pessoas interiorizam os valores burgueses e reacionários das propagandas de massa fazendo com que a população se comporte segundos os interesses das classes dominantes, defendendo esses interesses como se fossem os seus próprios interesses.

Isso não é algo novo. Malcolm X dizia: “Quem te ensinou a odiar a textura do seu cabelo? Quem te ensinou a odiar a cor da sua pele a tal ponto que você se alveja para ficar como o branco? Quem te ensinou a odiar a forma do seu nariz e dos seus lábios? Quem te ensinou a odiar você mesmo da cabeça aos pés? Quem te ensinou a odiar os seus iguais?”. Hoje fala-se sobre liberação de armas, se isso acontecer, as pessoas vão matar umas às outras, enquanto os opressores se confraternizam, aliás, isso já acontece em nosso cotidiano. Nesse caso, considero que o principal problema nem é as armas, mas a falta de consciência de classe.

Devemos unir esforços para mudar esse quadro social. Desconstruir os argumentos reacionários influenciando a opinião pública para uma direção libertária. E isso só conseguiremos estando junto com as pessoas, falando a mesma língua e trabalhando em conjunto com elas.

 8 – Comente sobre a situação política do país e acrescente comentários sobre o papel das eleições, religiões, educação e sindicalismo.

No Brasil vivemos um avanço do neoliberalismo, do conservadorismo e de um Estado militar cuja a consequência será nefasta especialmente para as populações mais fragilizadas. Sob o ponto de vista anarquista entendemos que nenhuma mudança social significativa virá dos processos eleitorais. As duas últimas eleições presidenciais comprovaram o que os anarquistas historicamente afirmam: Eleição é fraude ! O resultado da eleição de 2014, foi fraudado por uma manobra judicial para atender os interesses da elite. A eleição de 2018 elegeu um candidato (que se recusava a apresentar propostas políticas concretas) com base em mentiras e fake news, ou seja, outra fraude. Ou a população se organiza para construir uma mudança real ou ela será esmagada pela política capitalista. Só podemos confiar em nós mesmos e no poder de nossa luta autônoma.

As religiões neopentecostais, em sua maioria, crescem alimentadas pelo obscurantismo popular e defendem um projeto político extremamente autoritário. A bancada evangélica tem como objetivo criminalizar manifestações religiosas com as quais não possuem afinidades, colocar-se contra direitos humanos básicos e universais, impor o ensino religioso (da religião deles, entenda-se) nas escolas públicas e interferir na orientação sexual das pessoas. Esse fundamentalismo religioso representa uma ameaça ao Estado Laico, às minorias e à democracia. Precisa ser combatido urgentemente por todos os meios necessários.

A qualidade do ensino público – algo que poderia mudar radicalmente nossa realidade – não por acaso, vem constantemente piorando e enfrentando toda sorte de dificuldades: falta de estrutura, professores mal remunerados, desestimulados e muitas vezes despreparados, uma base curricular muitas vezes ultrapassada que engessa as próprias práticas pedagógicas. O resultado desse modelo é a alta evasão escolar, os jovens abandonam a escola por entenderem que aquele ensino não vai ajudá-los profissionalmente, além de inúmeros fatores econômicos e sociais que praticamente os expulsam da escola. Para piorar esse quadro que já é ruim, o governo ao invés de promover um projeto concreto para melhorar a qualidade da educação, visa implantar a proposta da Escola Sem Partido que criminaliza os professores em sala de aula e censura o pensamento crítico dos alunos.

O sindicalismo brasileiro atualmente passa por uma grande crise. A burocracia, o elitismo e a centralização das direções sindicais impede o avanço da luta dos trabalhadores. Como já falamos antes, o número de pessoas desempregadas, desalentadas e que trabalham informalmente crescem a cada dia. Essas pessoas serão excluídas até dos próprios sindicatos de trabalhadores ? Creio que o sindicalismo brasileiro se encontra numa grande bifurcação: ou ele fortalece, estrutura e atua lado à lado com os movimentos sociais e populares – se radicalizando ou o sindicalismo brasileiro vai agonizar lentamente nos próximos anos.

9 – Que ações têm sido organizadas para difundir o anarquismo no país? Você participa de quais coletivos e grupos?

A atuação anarquista no Brasil está crescendo progressivamente e de maneira bastante plural. Ao mesmo tempo que grupos organizam bibliotecas públicas e centros de documentação para preservar uma história de luta e resistência que foi constantemente renegada pela historiografia oficial, outros se dedicam a publicação de livros sobre assuntos diversos: história, teoria e temas da atualidade. Muitos trabalham a questão da educação, criam grupos de estudo, organizam aulas públicas, cursos populares gratuitos, atuam no movimento estudantil fortalecendo a luta de alunos e professores. Outros trabalham a questão da ecologia social, trabalham com comunidades indígenas e quilombolas. Atuam junto a movimentos por moradia no campo e na cidade. Formam grupos contra o racismo, feministas e lgbts. E militam no campo sindical, junto a movimentos comunitários, periféricos e populares.

Desde 2010, eu participo do Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri que é um grupo anarquista organizado que modestamente atua na região da Baixada Santista. A partir de 2012, inauguramos a Biblioteca Carlo Aldegheri na cidade do Guarujá, que tem como objetivo ser uma biblioteca social e também um centro de documentação libertária. Publicamos livros e jornais. Organizamos grupos de estudos sobre temas do campo libertário. Atualmente temos a colaboração do Coletivo Anarcofeminista Insubmissas (CAFI) um grupo feminino que trabalha a questão do anarcofeminismo. E dentro de nossas possibilidades procuramos atuar em conjunto com os movimentos sociais de nossa região. Quem tiver mais interesse em conhecer nosso trabalho, pode acessar nosso canal no youtube: https://www.youtube.com/channel/UCDSBGKWilr4PDjK8zJurRvg/videos

Ou entrar diretamente em contato conosco através do seguinte e-mail: nelca@riseup.net

Eu gostaria ainda de aproveitar a oportunidade para agradecer o amigo Carlos Lopes pela excelente entrevista!