1977 – O ENCONTRO ENTRE GLAUBER, DARCY, GULLAR e PEDROSA.

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Os quatro cavaleiros do Apocalipse.

Esta é a famosa entrevista com 4 grandes brasileiros, vindos do exílio nos anos 70 do século XX: o antropólogo Darcy Ribeiro (1922–1997), o poeta Ferreira Gullar (1930-2016), o cineasta Glauber Rocha (1939–1981) e o crítico de arte Mário Pedrosa (1900–1981).

O cineasta Glauber Rocha falou o que quis contra o Partido Comunista e por fim, com a sentença “Esse debate já era”, censurou a publicação do mesmo com a convicção dos santos.

Somente 20 anos após ter sido feita, essa entrevista para o Jornal do Brasil (conduzida por Elizabeth Carvalho) viu a luz do dia em um domingo, 23 de fevereiro de 1997.

Para cessar de uma vez por todas com falhas de memórias e invenções da mente transcrevo aqui, os melhores momentos dessa discussão levada a cabo por 4 grandes brasileiros sobre os rumos dessa Nação. Reproduzo a entrevista porque o assunto ainda é pertinente.

Certamente ler sobre 1977 é conhecer o Brasil de 2018.

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Darcy Ribeiro

Depoimentos:

“Lembro-me da conversa na casa do Darcy como um encontro que misturou confraternização e um grande constrangimento. Foi um papo estranho, porque o Glauber, por quem eu sempre tive muita admiração e carinho, resolveu nos provocar. Na verdade, na época o Glauber estava com certas manias, era uma mania de perseguição por parte do Partido Comunista. Havia semanas, ele tinha dado uma declaração esquisita de que o (general) Golbery era o “gênio da raça”. Eu tinha me desligado do Partido havia pouco tempo, mas continuava concordando com suas posições. Darcy, e mesmo o Mário Pedrosa, que tinha saído do partido, ficaram irritados. O problema não era o que ele dizia. Era mais a inconveniência de dizer aquilo num momento de volta do exílio.”

Depoimento de Ferreira Gullar.

“Não sei se a idéia de que a esquerda jamais será unida, a não ser na desgraça, me veio agora, 20 anos depois, ou quando saí da casa de Darcy naquela madrugada memorável em que Beth (Elizabeth Carvalho) resolveu reunir quatro dos maiores intelectuais brasileiros que estavam voltando do exílio. Estavam ali a genialidade de Glauber, a lucidez de Gullar, a sabedoria de Pedrosa e a apoteose mental de Darcy redescobrindo o Brasil e revelando o choque cultural da volta: o Rio desfigurado, a bela raça de Ipanema e a outra que não come, o capitalismo selvagem, o autoritarismo estrebuchando, a esperança de luz no fim do túnel. Eram os tempos de Geisel, a penúltima ditadura de uma série que havia começado em 1964 e que ainda ia esperar por Figueiredo. Foi um ano ambíguo, aquele, com avanços e recuos. Por um lado, o Congresso tinha sido fechado pelo “Pacote de abril”, havia tortura e já se dizia que era preciso acumular primeiro para distribuir depois. (…) Naquela noite na casa de Darcy, Glauber rompeu “solenemente” com o Partido Comunista, Gullar ameaçou ir embora, Darcy estava moderado, imaginem, e Mary Pedrosa cassou a palavra do marido quando ele ameaçou falar mal dos militares. Mais do que uma grande zona, foi uma cena tropicalista.”

Depoimento de Zuenir Ventura.

 

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Mário Pedrosa

A ENTREVISTA.

Em 1977, quatro dos melhores representantes do pensamento político e cultural do Brasil se reuniram, recém-chegados do exílio imposto pela ditadura militar, para discutir sobre o país que reencontraram. No apartamento de Darcy Ribeiro em Copacabana, Ferreira Gullar, Glauber Rocha e Mario Pedrosa, perplexos com um Brasil enfermo, procuraram, cada um a seu modo, os possíveis caminhos da cura.

Pergunta de Elizabeth Carvalho do JB – Como está sendo a experiência da volta ao Brasil depois de todos esses anos de distância?

Mário – … acho que a nação brasileira se perdeu. Tenho nostalgia do velho Brasil. E acho que na situação atual do mundo, onde há uma crise cultural, econômica e política geral, o Brasil fracassará seguramente se continuar a ter este mesmo programa, essa política de desenvolvimentismo, este modernismo exacerbado. Vejo, por exemplo, que o Brasil não pode fazer uma política de desenvolvimento no Amazonas como fez em São Paulo. Vai-se destruir a Amazônia , que são dois terços do território brasileiro. A nação se perde, em face de um Estado que se fortalece, que se torna dia após dia uma instituição cada vez mais neutra, e você não tem meios de vencer esta situação.

Darcy – Há uma avidez na gente que nos procura, e que esta é a atitude nossa também. São duas fomes que se encontram, a gente quer nos ouvir, e nós queremos ouvir toda a gente. Então, há uma procura nossa do país que nós deixamos, ou do país outro que era, e a indagação muito forte que eu faço é: o que fizeram do meu país, onde está ele? Eu me assusto, porque o que estão fazendo é muito ruim. Por exemplo, eu visitei São Paulo, onde estudei. Nasci em Minas, mas me considero muito paulista. É horrível o que estão fazendo com São Paulo, que é hoje a cidade mais monstruosa do mundo, não há nenhuma cidade que tenha tanto cimento por metro quadrado. E os paulistas estão espantosamente contentes. … Aqui no Rio, me esperavam surpresas incríveis. A primeira delas foi ver a beleza da raça brasileira em Ipanema. É a raça dos que comeram. Depois fui ver Caxias, fui ver Madureira, lá é outra raça, a dos que não comeram. A figura dos que não comeram. A beleza de Ipanema está muito mais bela, as meninas e os rapazinhos, as tribos, são uma beleza. E as sub-tribos de Caxias, do Méier, estão mais terríveis ainda. Há outras coisas que me assustam, me deixam perplexo. Uma delas é a falta de apreço por coisas que eram importantes para mim. Por exemplo: tinha um Serviço de Proteção aos índios criado pelo Rondon que salvou muita tribo no Brasil. É claro que tinha defeitos, caiu numa grande decadência. Pois bem, aquele serviço desapareceu, jogaram fora toda a tradição rondoniana, que foi uma das poucas coisas humanísticas sérias que havia neste país, para criar a tal da FUNAI, uma fundação que parece querer ter lucro com os índios. Estou apavorado.

Mário – Um general disse não ver porquê esse horror a que o índio tenha seu destino natural de ser assalariado…

Darcy – Nós chegamos aqui perguntando: “como é que vão as coisas, gente?” Quando é que chega a democracia por aqui?”  E o pessoal também pergunta pra nós: “como é que vai ser a democracia aqui?” A gente não sabe! (gargalhada cavernosa de Gullar). A gente está aqui pegando uma xepazinha dessa vida com o gozo de poder viver aqui, de poder trabalhar junto, de poder ser solidário, de poder trabalhar junto, de poder ser solidário, de poder fazer coisas novas, boas, sérias, na terra da gente. Mas não podíamos trazer solução nenhuma. Esta expectativa generosa generosa em relação a nós talvez se explique porque pensam que cada um de nós é igual àqueles melhores de nós, que teriam alguma coisa para trazer mesmo, mas que estão proibidos de contribuir para o Brasil porque estão privados de conviver esse tempo todo.

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Ferreira Gullar.

Gullar – Bom, eu, quando cheguei, estava meio anestesiado. Sou meio lerdo, as coisas me atingem e eu só vou tomar consciência muito tempo depois, de modo que ainda continuo meio atordoado. No outro dia tive que ir em Jacarepaguá, onde não ia há muitos anos. E eu não conseguia voltar de lá, começou a me dar um pânico, porque quando o ônibus surgiu como uma fera espantosa, passou pelo ponto e foi em frente. E eu ali, observando aquelas pessoas, mulheres e crianças no colo, subindo naqueles ônibus que botavam gente pela janela, para depois saltar para pegar outro ônibus e ir para o inferno. Ao mesmo tempo passavam carrões com sujeitos felizes, dourados de sol.  Fiquei ali, olhando aquele movimento todo, e pensei que aquele mundo ali não tinha nada a ver comigo. Pensei na poesia, na literatura brasileira, no Drummond, no Murilo Mendes e me dei conta de que a gente não tomava conhecimento mesmo de nada disso, desse outro mundo, dessa sociedade que está se formando com o capitalismo selvagem.  Agora, eu vi também uma coisa muito positiva, um interesse surpreendente dos mais jovens pela poesia, que sempre foi um troço bastante desprestigiado. Há uma grande quantidade de jovens fazendo poesia, inclusive buscando formas novas de divulgá-la, editando livros em mimeógrafo, criando grupos para declamar poesia.

Glauber – A partir desse reencontro aqui, somos sobreviventes do exílio, porque muitos estão exilados e outros morreram. Nós, por motivos diversos, nos encontramos aqui para discutir a respeito da nossa volta e do Brasil. Eu acho que o fato de estarmos aqui discutindo significa que alguma coisa já mudou no Brasil. Eu não participo de uma visão pessimista do Brasil por um motivo simples – eu acho que essa é uma civilização nova. Civilização… não gosto desse termo. Acho que civilização e barbárie são dois termos da antropologia racista, classista. Bárbaros e selvagens, somos todos civilizados. Sou protestante e anticatólico, ao voltar, o meu primeiro choque que tive foi descobrir que o Brasil era um país católico. Estruturou-se no inconsciente dos brasileiros uma noção de pecado, de culpa, de medo, de hipocrisia, de penitência, de falso heroísmo e de demagogia que fez com que ninguém ouse — ninguém não, mas pouquíssimas pessoas ousam — pensar fora de certas normas culturais, filosóficas e políticas comuns à nação. Mesmo sendo uma sociedade nova e subdesenvolvida ela também já tem, a par de toda a miséria social, da fome e da exploração imperialista, da anarquia institucional, tudo isso, nós temos os nossos valores formados, alguns valores em formação, alguns princípios sobre os quais podemos discutir. Quer dizer, a gente tem uma filosofia, uma política, e tudo isso vem profundamente limitado por esse medo de pecado da polêmica no Brasil.

Eu não tive realmente problemas de caráter legal para voltar ao Brasil, ao contrário de todos vocês, não fui preso, não fui chamado. Passei seis anos fora do Brasil, vivi em vários países do mundo, inclusive em países socialistas. Agora, eu tive e continuo tendo um grande problema aqui, que é um problema contraditório em relação à repressão e que coloca, pra mim, um outro problema de repressão. Porque eu cheguei ao Brasil e fui violentamente atacado pela chamada imprensa progressista. Aliás, eu só vim aqui pra dizer isso. Não vou dizer mais nada. É um registro histórico. Diante de pessoas responsáveis eu vou fazer a minha queixa, que vai num depoimento aqui contra pessoas sérias nesse país. O jornal Movimento, jornal progressista, do MDB, onde nós encontramos o nome de Chico Buarque de Holanda, Fernando Henrique Cardoso, Marcos Freire, Alencar Furtado e outros pessoas, me jogou na cara aqui por quatro semanas uma manchete dizendo “Dobram os Sinos por Glauber Rocha”. Me condenaram à morte politicamente, me disseram que eu era um vendido ao fascismo internacional. De agente da CIA vendido ao SNI, de agente policial, eu fui chamado abertamente na imprensa. O jornal O Pasquim, do seu Jaguar publicou que eu tinha recebido cinco bilhões do seu Ney Braga para filmar as passeatas estudantis para a polícia. O senhor Ruy Guerra no Jornal do Brasil, disse que eu era louco, que enquanto eu não fosse internado isso era perigoso politicamente pro Brasil. Fui para o exílio, como todos os brasileiros aqui, comprometido com o processo político brasileiro, mas sempre tive uma posição de independência, de nunca pertencer a partido político nenhum, porque as ideologias dos partidos políticos vigentes no Brasil, de esquerda e de direita nunca me entusiasmaram. Sempre achei que os partidos liberais são instituições decadentes da velha sociedade européia e o Partido Comunista nunca me satisfez do ponto de vista político, porque as opiniões no terreno da arte e da cultura difundidas por intelectuais ligados a ele nunca me agradaram, inclusive internacionalmente. Eu sempre fui um cara grilado com o problema do massacre stalinista dos intelectuais na União Soviética. Sartre denunciou isso, todos os intelectuais responsáveis do mundo denunciaram isso ainda em 1954.

No Brasil, Jorge Amado se levantou em defesa do Boris Pasternak, eu me lembro disso na Bahia. Quer dizer, não afino com o Partido Comunista, e quero registrar isso historicamente, compro as inimizades, assumo até perigo pessoal. Eu quero aproveitar para romper solenemente aqui com esse partido. Ele provocou grandes erros políticos no Brasil. Tem uma política cultural desastrosa, fascista, limitativa, castrativa, é colonizado pelo modelo soviético, nunca tentou uma crítica direta da realidade brasileira, esteve a reboque da burguesia nacional, sempre tentando ou o oportunismo político ou negociar os dissídios da classe operária no Brasil. Não sou nacionalista do ponto de vista da xenofobia, eu acredito numa nação como o Brasil, uma nação importante, uma nação que vive crises históricas, porque 1964 não foi para mim um corte epistemológico, foi apenas mais uma exclusão do processo histórico brasileiro. A nação brasileira, como diz Mário Pedrosa, é uma nação que está se perdendo, mas nós temos que resolver os nossos próprios problemas. Então neste sentido, sou rigorosamente nacionalista. Sou antissoviético, antiamericano, anti-chinês, antissocial-democracia européia. No Brasil temos a possibilidade de criar um modelo político novo e essa idéia não é um absurdo.  Ela encontra raízes na nossa cultura.  Digo isso do ponto de vista humanista, e não do ponto de vista tecnocrático com que é tratado hoje. Porque se o consenso for o marxismo-leninismo, esse consenso já era, esse é para mim um fenômeno histórico histórico russo que deu no que deu. O Marx, o autor do roteiro, serviu a mil interpretações. A linguagem da esquerda francesa e latinoamericana não vai passar, não dá para passar mais, já era. Superou-se no Chile, na queda de Allende.

Discordo em geral inclusive da orientação dos países comunistas. Até morei em Cuba, fui um dos primeiros brasileiros a escrever sobre a revolução cubana, estive em Cuba como cineasta e não como enviado de organizações políticas. Fiquei escandalizado em ver como a revolução cubana se deixou, justamente em nome da segurança e do desenvolvimento, do progresso e do humanismo, se transformar em colônia soviética. Lenin dizia que em política tudo é ilusão, exceto o poder – se não foi Lenin, foi Jean Cocteau, não tem importância (todos riem).

O discurso do presidente – um discurso aliás surpreendente, que anunciava conceitos de uma nova democracia – contrastava com as denúncias de torturas graves no país contra intelectuais de esquerda. Eu vou observar, e vejo que eles fazem parte de um movimento pró-emancipação proletária. E a gente descobre que é o último remanescente dessas coisas maoístas e trotsquistas que implanta-se junto aos jovens. E saem esses jovens a desenvolver uma atividade subversiva elitista e morrem por isso!Quer dizer, é o cristianismo elevado a nível de metáfora paranóica e grotesca. Nós nunca tivemos substância ideológica. Ninguém discute problemas nesse catolicismo. A esquerda é sagrada. Não gosto de heróis. Brecht dizia: “pobre do país que precisa de heróis”. Descobri lá fora que somos colonizados mesmo. Mais do que a gente pensa. Colonizados sexualmente, colonizados na cuca, as pessoas mais progressistas gostam de Gary Cooper, Marlon Brando, de cigarro Marlboro, de uísque americano, é um servilismo num país em que Emanuelle vai ao Congresso, em que a (atriz) Sílvia Kristel, a pornografia, entra no Congresso e o Petrônio Portela, o articulador… recebe porque não sabe quem é. Isso é que é grave, a desinformação total…

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Glauber Rocha

Darcy – Peraí, precisa tomar cuidado… pelo que você disse, alguém pode entender até que você está de acordo com a tortura…

Glauber – Estou fazendo a mesma crítica que Sartre fez sobre a tortura na Argélia… O Jung diz: “os católicos adoram o Cristo crucificado”. Meu Cristo é a ressurreição. É o Cristo do Apocalipse, não é o Cristo dos quatro evangelhos. Então, esse negócio é importante. A segunda é mais importante: a tortura é uma brutalidade. Nesse país se torturou muito, barbaramente, com a complacência inclusive da grande burguesia, que hoje fala em liberdade. A tortura deve ser entendida como um grande fenômeno – quer dizer, a fenomenologia é escatológica – dessa contradição que existe aqui do país colonizado. Mas quero dizer que os torturados, as vítimas não estão isentas de seus erros políticos. Tentei reabrir a crítica à esquerda e descobri que no Brasil a crítica filosófica ao pensamento baseado no marxmismo, no leninismo, no maoísmo está interditada. Quem colocar é agente da CIA. Descobri em corpo presente, como estão sofrendo Caetano, Gil, o terrorismo de um organismo que não existe, porque essa tal de revolução brasileira fracassou em 64. Eu acho que o Geisel – queiram ou não queiram os analistas, os pessimistas – provocou uma ruptura importante nesse país. Permitiu que o debate se restaurasse, colocou nas suas palavras as questões sociais e econômicas, diante do imperialismo, do povo brasileiro. A intelectualidade brasileira não está levando isso a sério. Na verdade o Brasil vive momentos novos. Não são momentos de glorificação, mas de realismo crítico. Estamos descobrindo nossa miséria, nossa limitação. Discordo fundamentalmente dessa tese de que a produção intelectual independe dessa relação econômica. É a tomada de consciência – é o que Marx diz – que faz você se libertar desse conceito de classe. E nem tenho nada para dizer mais.

Gullar – Peraí. Uma questão de ordem. Desliga esse treco. (o gravador é desligado. Contrariado, Gullar diz que não tem condições de prosseguir neste encontro. Não se pode responder publicamente às críticas abertas de Glauber ao Partido Comunista. Protesta contra o desequilíbrio de forças – as acusações de Glauber só podem ser conhecidas na imprensa do ponto de vista do acusador, e não do acusado. Darcy e Zenir (Ventura, o outro entrevistador) interveem. Darcy sugere carinhosamente, que por mais lúcida e honesta que seja a sua indignação contra setores da esquerda, ele está diante de três exilados recém-chegados com graves problemas políticos. Há muitos temas importantes sobre os quais todos querem conversar, diz Darcy, e o encontro dos quatro é tão bom que vale a pena unir idéias, e não dissipá-las. Glauber concorda. Gullar decide prosseguir. O gravador é religado).

Gullar – Agora eu vou falar!

Glauber – Se você quiser, Beth, não divulgue o que eu disse aqui sobre o comunismo. A democracia começa pela colocação dela dentro do que as pessoas pensam. Eu não transo com hipocrisia, realmente. É o seguinte: eu disse o que penso. Agora, retiro a gravação pelos inconvenientes.

Darcy – Retira toda não!

Glauber – Não, Darcy, eu retiro toda, democraticamente. Eu levo em consideração o que o Gullar diz. Se a questão do PC não for discutida aqui, eu me recuso BA participar porque vai ser uma babaquice, porque Partido Comunista se discute na Itália, na França…

Beth – Nas democracias européias certamente.

Zuenir – É que aqui você pode criticar o Partido Comunista e não pode defendê-lo publicamente, Glauber.

Gullar – Você pode escrever um artigo, Glauber…

Glauber – Isso eu não faço porque a esquerda me assassina.

Gullar – Você tem o direito de pensar e você pode escrever e publicar. Agora nesse tipo de debate… Eu tenho que me retirar, porque eu tenho uma posição em relação a esses problemas e se eu for ouvir em silêncio eu vou estar concordando com o que você está dizendo.

Glauber – Então, Gullar, a gente não pode mais discutir mais nada no Brasil!

Gullar – Você está descobrindo isso agora? Nós estamos em uma ditadura, rapaz!

Glauber – Acho que ditadura é na União Soviética. Bruta…

Darcy – Também.

Glauber – Também, não. Lá é que é foda. Aqui é diferente.

Gullar – Lá é o seguinte: lá eu faria esse discurso e você diria: “Gullar, eu me retiro porque não posso falar”.

(Gargalhada geral)

Mário – A discussão degenerou porque o Glauber declarou logo no princípio que ele não ia participar da discussão tal como se apresentava. Ele iria dar a sua opinião e se calar. Foi isso que ele disse, não foi? Escrevi um documento em que faço a crítica das esquerdas, mas também concordo com várias coisas. Faço a crítica a uma posição ideológica tão apaixonada, tão unilateral quanto a da direita. Não estou passando a mão por cima da esquerda e considerando a esquerda sagrada. Não. Ela errou.  A extrema-esquerda errou, o pessoal das guerrilhas errou, mas eu defendo a coragem, a bravura com que lutaram.  Acho necessária essa opinião para restabelecer o equilíbrio geral e ver se os militares, esse pessoal a quem tenho horror, tomam consciência de que o outro lado existe também. O Brasil é a extrema-esquerda, é a esquerda, é a direita.

Glauber – Como o Gullar não tem condições de refutar certas teses minhas sobre o Partido, como o Mário… Eu acho, por exemplo, que a sindicalização é tutelada, que a sindicalização e a estatização vão levar o Brasil para o socialismo, queira ou não queira o CEBRAP, isso, aliás, se reflete na vida do país.

Gullar – Glauber, o inimigo do socialismo não é o CEBRAP!

Glauber – É o CEBRAP, é a CIA, Miguel Arraes, a Constituinte de Lisboa, o MDB, Ulysses Guimarães, a multinacional, Fernando Gasparian, todos esses intelectuais, então não dá pé essa discussão, senão nós vamos agredir os amigos. Eu acho que o Reis Veloso tá certo, o Simonsen tá certo, a planificação econômica do Brasil tá perfeita, a luta contra a inflação dentro do balanço internacional, que o projeto é socialista…

Beth – Mas você está anulando com essa sua retórica toda a troca fundamental de comunicação.

Glauber – Não! Você está sendo liberal! Se o Frota quis derrubar o Geisel, não sou eu que vou dizer aqui que o governo é socializante, que vai me dar o que, uma declaração no jornal e um tiroteio na minha casa? Não dá pé, a discussão mixou. Não há condições no Brasil se fazer um
debate amplo e aberto.

Darcy – Mas Glauber, nós precisamos conversar…

Glauber – Conversar tudo bem. Mas eu lhe digo, Beth, não publique nada do que eu digo, embora eu não abra mão de nada do que disse, porque vai cair num debate babaca.

Beth – Mas há muitas coisas que nós queríamos discutir aqui. Tanto é que todos concordaram com esse encontro, com uma troca de idéias e, no princípio, nós estávamos aqui falando isso. Ou você veio aqui checar que é impossível?

(Confusão. Todos falam ao mesmo tempo.)

Glauber – Ô Beth, eu não direi mais nada, me recuso a dizer. Esse debate já era.

O BONDINHO

O Bondinho – Organização: Miguel Jost e Sergio Cohn – Editora Azougue – 360 páginas.

Imprensa alternativa dos anos 1970
Capa do livro O BONDINHO

Quando se fala em imprensa underground brasileira nos anos 70, nos referimos aos veículos  com pretensões libertárias que penavam em sua sina de expressão “imprensada” entre a sola e o cassetete do Ato institucional número 5, o famoso ato “nada pode” (no futuro, os próximos Atos aprimorariam a insânia desse quinto).

Os dois grandes veículos impressos da época que vêm à mente, sempre que se fala em underground são os cariocas O Pasquim (um underground com ares Ipanemenses e a nata da intelectualidade) e o jornal Rolling Stone,  o famoso pasquim do rock and roll e derivativos (na verdade uma edição desautorizada pela matriz que cá na Tropicália, durou alguns bons anos que não chegaram a cinco). Mas como chamar de underground um jornal como o Bondinho que chegou a vender 50 mil cópias de uma única edição?

E o que representava esse “Jornalismo cultural, livre e independente” do Bondinho, um dos vários veículos da época tais como Flor do Mal, Jornal de Amenidades, Presença e O Verbo?

Como explica Miguel Jost, um dos organizadores dessa edição em livro “o Bondinho foi publicado pela primeira vez em outubro de 1970 e inicialmente era um guia de informações sobre a cidade de São Paulo distribuído pela rede de supermercados Pâo de Açúcar. Após pouco mais de um ano e 30 números sob estas condições, a revista se tornou independente, passou a ser distribuída em bancas de outras cidades e modificou radicalmente sua proposta editorial. Nos 13 números (isso mesmo, o Bondinho circulou livre em 13 edições para depois se calar em uma dessas garagens da vida) que se seguiram a esse movimento, o Bondinho desenhou um importante retrato da cultura brasileira do início da década de 1970.” E não há a mínima dúvida sob o último comentário. Muito se diz sob a falta de memória do povo da terra de Macunaíma, coisa até enraizada nas atitudes. O preservacionismo é um fenômeno tão recente em nossa aldeia, que a maior parte dos arquivos das TVs dos anos 60 foram apagados para reutilizarem as fitas com novas gravações. Parece incrível, mas era o que ocorria. E segundo o próprio Jost, graças ao indivíduo Elísio Brandão, que possuía as edições desse Bonde perfeitamente conservadas, foi possível (re)fazer esse livro com linda capa e conteúdo da maior relevância. O que seria da memória de todos se não fosse a memória de um?, fica a pergunta tanajura.

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Jost continua: “A intimidade com que as entrevistas corriam é uma característica ímpar do Bondinho. Não era raro que seus repórteres passassem alguns dias frequentando até mesmo a casa desses entrevistados”. 70 à pampa, bicho. Mas muito bacana, sabe? Na boa. As entrevistas escolhidas a dedo (as mais releventes para o público de hoje é óbvio) e listadas em ordem cronológica somatizam tons de discernimento intelectual e viagem fantástica ao mundo do impossível da década de setenta. De atores a músicos estão listados de janeiro a maio de 1972 entrevistas com Tom Zé, Chico Buarque, os Mutantes (na maior parte, um tremendo papo furado de quem tinha fumado “um”), o guitarrista Lanny Gordin (nascido em Xangai na China, filho de um russo com uma polonesa), o maestro Rogério Duprat, Caetano, Gil, Gal e Bethânia, o ator Walmor Chagas, os Novos Baianos, Luiz Gonzaga o rei do baião, Milton Nascimento e muitos outros.

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Tropicalismo: Miranda e Veloso.

Os termos e gírias foram preservados nesta reedição do Bondinho para que a refeição não perdesse o paladar. Parte fundamental do processo.  E durante vários momentos mágicos, entre palavras expelidas em meio à insights poderosos, percebi como estudante curioso das coisas humanas, que pensamentos ditos naquela época só foram se tornar realidade para a maioria das pessoas, das futuras gerações, às vezes duas décadas depois. O ritmo do Brasil parece ser um, mais lento, em marcha lenta e o dos artistas mais acelerado. E logo no Brasil, onde era (e é) comum se chamar artista de bicha, maconheiro, exatamente porque quem xinga não quer parar para pensar sobre a sua própria vida, ninguém quer compreender nada. Aí ofende. É mais fácil chamar o sujeito de maluco do que estender-lhe a mão e a consciência. Há alguns momentos (se não todos) absolutamente impagáveis em O Bondinho. Se fala sobre tudo, entremeado é claro, com muito papo cabeça, coisa de gente antenada com seu tempo. Fala-se bastante sobre conscientização política, ou há sempre uma palavra bem escolhida para se desculpar por não se estender sobre o assunto. A questão do exílio e a ditadura em si, nunca é dita abertamente. Como se houvesse a necessidade de esquecer e perdoar (e logo em 1972! Muita água ainda iria rolar por baixo dessa ponte) como o próprio Gilberto Gil diz logo no início de sua entrevista: “Eu não trabalho com mágoa, meu irmão. Aprendi isso… que a gente não pode ser paternalista…” Mas Gilberto Gil fala, entre delírios de artista desconstruído, e vai direto ao assunto na mais reveladora e alucinada entrevista à bordo de todo o livro.

Chico Buarque prefere cambiar a palavra ditadura por censura. Para bom entendedor, meia palavra “dita” basta. E êita, palavra dura de ler e ouvir.  Essas passagens e respostas abaixo, escolhidas a dedo, são um prazer atemporal, infinito e único. Se conseguirmos nos colocar no mesmo tempo-espaço dos entrevistados, descobriremos que o país, o mundo do pau Brasil pouco mudou, que nossas angústias ainda são meramente comuns, que o ser ainda é humano.

REFLEXÕES.

Tom Zé (janeiro de 1972) – A entrevista marca o momento em que se considerava o baiano de Irará “sumido”, por estar ausente das TVs durante mais de um ano. Ele retornou à baila através do Movimento de Incentivo à MPB no programa da Hebe Camargo e o papo que rola, marca esse momento o aparentemente distante estouro em 1968.

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“Sou incapaz de ler qualquer poeta”, “o futuro da família brasileira é um hálito puro”, “um dos melhores pratos criativos que se pode comer, hoje, na arte brasileira, é o prato da publicidade”, “nunca pense que você já conhece tudo onde a estupidez pode chegar: ela sempre pode surpreendê-lo!”.

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Chico Buarque (janeiro de 72) – A entrevista nasceu de dois encontros: um antes de um show no Canecão no Rio e outra em seu apartamento no dia seguinte, tomando “Fernet e cerveja”. Buarque parece receoso com as palavras ditas, após ter retornado do exílio italiano, talvez temeroso com as conseqüências.

“Estava na proporção de duas músicas censuradas em três”, “no Samba de Orly foi censurada uma frase: “pede perdão pela duração desta temporada”, “ou fazia meu trabalho, ou então realmente parava e partia pra outro negócio”, “A censura está indo muito longe do que uma censura política, não sei. Talvez fosse bom, pegasse a subversão, vamos lá; mas não, já transcende isso”, “Não pode dizer que não pode falar. Pra mim é tão absurdo como amanhã não poder falar: “eu te amo.”, “eu não tenho nada interessante pra dizer”, “tem duas maneiras de ser indesejável em um lugar: ou te dizem claramente ou te mandam um indireto”, “eu te digo, há muito mais raiva do Gil que do Caetano… Você vê na cara de um e entende por quê. Pela cara, pela atitude, pela narina, pela cabeça do Gil”, “minha música não é música para elite”, “se alguém me faz subversivo é a própria censura”, “eu não sou tecnicamente um bom compositor”, “o jovem de hoje, ao contrário dos jovens do meu tempo, procura na coisa internacional, uma coisa modelo inglês, ou modelo não sei o quê, uma libertação que aqui não existe”, “eu adoro samba, mas não posso ficar propagando isso por aí não, viu? Senão, vão me confundir com o Plínio Salgado”, “a melhor coisa que se pode fazer é ser hippie, porra”, “o cara que tem dois anos a menos que eu, 3, 4, 5 anos, sabe que eu sou uma merda mesmo, eu e toda a minha geração. Então o que vão querer? Se identificar com o irmão mais velho? Não! Vão querer saber do primo que mora em Liverpool – que é uma cidade horrorosa…”, “A Europa é tão velha, tão escrota, tão podre. Aquilo não tem remédio, não. A Itália não tem remédio, não tem, não adianta”.

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Mutantes (janeiro de 72) – “a música que a gente faz não é a música de consumo” (Arnaldo), “a gente ouve Debussy e vê que, em relação ao clássico antigo, ele era um cara muito louco, muito louco mesmo” (Arnaldo), “atualmente, o que é mais novo é o rock and roll – um negócio já velho” (Arnaldo), “ficar só fazendo som em estúdio não acho bom” (Ritta com dois Ts mesmo), “E esse barato das crianças voadoras?” (Sérgio), “Nós estamos a fim de ir para a Inglaterra e comprar um moinho perto de Londres” (Arnaldo), “a dona Selma da censura é uma mulher simpática, muito mais legal do que eu esperava” (Sérgio), “eles invocaram com a palavra caspa da letra de Cabeludo Patriota – que mudamos (o nome) para A Hora e a Vez do Cabelo Crescer – porque acharam plasticamente feio” (Arnaldo), “nós não tamos a fim de nos meter em política” (Arnaldo), “o barato legal é o Chacrinha e não o Sílvio Santos” (Arnaldo), “há dois conjuntos no Brasil: os Mutantes e os Incríveis” (Arnaldo), “todo mundo tá sabendo que o Gil e o Caetano não vão voltar a ser o que eram” (Arnaldo)

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Caetano Veloso (fevereiro de 72) – “O primeiro cara que fez o trio elétrico, também de certa forma, inventou a guitarra elétrica, que já existia nos Estados Unidos mas não existia no Brasil…isso criou um estilo de carnaval na Bahia que se tornasse essa coisa triste que é o carnaval do Rio, essa coisa ainda bonita, mas melancólica: exatamente a conservação de uma expressão do passado.”

“Aquela marcha que eu fiz, “Deixa Sangrar”. É apenas uma frase. É de uma música dos Rolling Stones chamada Let it Bleed, que por sua vez é uma piada sobre a música dos Beatles, que se chama Let it Be. Bom, não foi por acaso que eu coloquei essa frase numa música de carnaval. Foi porque, vendo os espetáculos dos Rolling Stones, e vendo Mick Jagger em cena, vi muito claramente que o que ali se busca o que a gente vê aqui no carnaval. Mas eu não quero dizer que seja somente uma coisa dionisíaca de você pular, gritar, de homem se vestir de mulher. É de ter tudo, porque isso é uma coisa absolutamente maravilhosa: quando chega o carnaval, de uma certa forma, tudo pode acontecer.”

“Todo esse pessoal inglês, tanto os Beatles como os Rolling Stones, e  também a juventude americana, foi encontrar vitalidade, sem dúvida nenhuma, numa forma negra de expressão, ou seja, no blues.”

“Hoje eu estava ouvindo Carmem Miranda cantando: “Adão, meu querido Adão, a serpente me enganou e o nosso Mestre do Paraíso nos expulsou”. Carmem, cantando com todo aquele ritmo de música que é feita para dançar e pular na rua, tem o ar mais debochado possível e não há nada de mais profundo e sério, e mais terrível, que a frase que ela está dizendo. Isso está no carnaval brasileiro, nos Rolling Stones e no blues.”

“Me lembro em Santo Amaro, senhores que o ano inteiro estão atendendo no balcão e tal, com filhos de 18 anos, não sei o quê: chega o carnaval, botavam brincos, batom, saíam rebolando na rua, pintavam o diabo. Isso é muito simples, mas é muito profundo, também. Acho que o carnaval interessa por isso. Agora, eu não quero discutir o negócio da convenção ser de três dias: e depois, saber em que medida essa explosão pode se generalizar, pode se estender para o ano inteiro. Eu não tenho nenhuma proposta política a fazer sobre o assunto. Não é omissão, não. Não é, também, que o carnaval sugira uma sociedade ideal, não. O carnaval, nesta sociedade real, desempenha um papel fundamental. Terapia, também. É estética. É uma força cega, pode ser política.”

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Em contraposição a Chico, Gilberto Gil que foi exilado mesmo (junto a Caetano) fala claramente sobre a pressão e a posterior detenção e expulsão do país. Talvez, essas raízes do inconformismo, tão explicitadas nesta entrevista, o tenham levado à política décadas depois (fevereiro de 72).

“…Essa idéia do sonho acabou (do Lennon)…bom, eu comecei a fazer a letra em Glastonbury, no último festival que houve na Inglaterra em junho, dia 21 de junho de 1971, o dia de solstício de verão que é o dia mais longo do ano, é o dia que o sol vai mais alto, e era o dia exatamente que em Glastonbury  se comemora o dia da fertilidade, no sentido ancestral da cultura, dos costumes ingleses. Inclusive esse vale foi escolhido porque é onde fica o Thor, monumento que fica numa montanha construída, uma montanha artificial. Esse monumento foi posto na linha do vale, que faz justamente no dia de solstício uma linha que vai direto até a pedra de Stonehenge, onde o sol se concentra naquele meio de pedra, e forma uma linha de força de energia que fertiliza toda a região, dentro do sentido da ligação, vamos dizer, mística, com a coisa cósmica, na visão dos antigos povos da ilha, ta entendendo? E foi o último também que a gente foi, tava o grupo todo, foi a turma toda. Eu, o Caetano, Dedé, Sandra, Macalé, Giselda, o Glauber Rocha, o Júlio Bressane, o Rogério Sganzerla, Helena Ignês, Tini, Nina, Moacir, Áureo e… sei lá rapaz, mais uns 40 brasileiros. E realmente no dia 21 de junho a gente sentiu o sol batendo, e a linha de força, as vibrações, tudo, era realmente um negócio muito forte, era um festival de música pop, era o último que tava se fazendo na Inglaterra. Havia aquela coisa toda, foi logo depois da entrevista do John Lennon falando que o sonho tinha acabado, daquela entrevista que o Caetano tinha feito para a revista Veja, onde ele falava de tudo isso.”

“Eu para falar que o sonho acabou, no sentido todo de que a música pop tinha chegado a um fechamento de ciclo e etc, era preciso que eu estivesse achando mesmo, acreditando mesmo. Eu não ia dizer assim de graça, porque John Lennon tava dizendo. Eu concordava com ele, a visão dele era perfeita, um dia inclusive eu tava conversando com Caetano, que disse:  “É claro Gil, acabou pra ele, né?” Eu disse “lógico, acabou para ele, quando acabar para mim, eu falo”.”

“O fim do tropicalismo foi uma coisa do destino. De repente a gente teve que parar o trabalho, a gente foi preso, teve que sair do país.”

“Eu cheguei no Recife, fui fazer um show no Teatro Popular do Nordeste. Fiquei lá um mês e o pessoal em Recife tinha muito aquela coisa de cultura popular, naquela época era uma coisa bem viva pro pessoal universitário, tudo o mais eles tinham essa preocupação com folclore. Então eles achavam que eu era um dos artistas brasileiros interessados naquela coisa,  então eles faziam questão de levar, de gravar ciranda pra mim, me levar pra ver a Banda de Pífaro em Caruaru. Eu chorei, fiquei emocionado, de ver aquela coisa tremenda. Então eu voltei do Recife para o Rio com a certeza de que alguma coisa tinha de ser feita em termos de movimento, em termos de integração daquelas necessidades que eu achava que já existiam no universitário brasileiro, ali… Onde Recife é bem um exemplo, cê ta entendendo? Foi uma porrada que eu tomei lá e que me fez vir tomar outra no Rio, ta entendendo? Quando eu comecei a reunir o pessoal, par ver o que a gente fazia… isso foi em 1967, pouco antes do Festival de Domingo no parque, de Alegria, Alegria. Então nessa tentativa de reunir o pessoal nada deu certo. Chico inclusive fala, sem citar a época, mas ele fala na entrevista à vocês, onde se tentava reunir o pessoal, então chegava um bêbado, outro chegava tarde, outro tinha que sair… os outros não concordavam com nada daquilo. E eu com aquela ilusão de tentar reunir o pessoal.  Na verdade era uma atitude minha, era reflexo de uma má consciência política, tentando misturar tudo com aquela confusão na cabeça de música de protesto, aquela coisa toda de música participante, não sei quê. Foi uma época em que eu estava realmente muito confuso. Muito por fora, cê ta entendendo? Mas também me desencantei logo, tudo ficou logo muito claro que não dava certo, aí fiz “Domingo no Parque”, fiz o “Frevo Rasgado”, fui aproveitar eu mesmo o material que tinha conseguido em Recife.”

“A gente foi para a (TV) Tupi fazer o (programa) Divino Maravilhoso, ainda a gente foi com aquela disposição de oferecer o melhor, do sentimento, da vibração anterior da gente. Mas no fim a gente já estava quase desprovido dessa coisa, porque aí já estava terrível, a opinião pública toda dividida, prefeitos de algumas cidades do interior fazendo abaixo-assinados para a TV Tupi cortar o programa da gente. Ou seja, você começa a sentir que você ta marginal, que você está sendo visto como uma coisa monstruosa, como um câncer, e a imagem do câncer pra mim é uma coisa deprimente.”

“… uma moça me entrevistando em Londres há pouco tempo, pra (revista) Manchete, me perguntou sobre a intencionalidade da violência, se a gente não tinha realmente intenção… ou seja, não era sádica a nossa atitude, ou masoquista. Não era sádica em relação ao público, no sentido de “ta, não está entendendo a gente? Então vamos aumentar a dose, vamos fazer pior ainda, no sentido de vocês não entenderem mais”. Também não era masoquista no sentido de “vamo ser sofredor, incompreendido”. Não era, era um misto de todas as coisas, era paranóia, todas essas coisas. Uma coisa muito difícil de analisar, no sentido de encontrar o órgão doente, cê ta entendendo? A doença estava no corpo inteiro.”

“Eu era visto como uma figura demoníaca, mefistofélica, com aquele bigode, aquela barba.”

“Londres é roxo e verde. Essas duas cores são muito o símbolo da coisa londrina, roxo… Roxo, rapaz! Roxo que no Brasil é símbolo de luto, cê tá entendendo?  Roxo é cor de caixão de defunto. Na Inglaterra, roxo é como vermelho é aqui. Uma cor bonita, que combina com o acinzentado que eles têm na alma, uma cor meio desmaiada.”

Gil: “Pra mim, pop era uma coisa urbana, cê tá entendendo?”

Repórter: “Coisa asfáltica…”

Gil: “É… coisa concrética, era muito isso.”

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Jards Macalé (fevereiro de 72)

“Por que esse negócio de “artistas”? Porra, quando é que vão acabar com isso? São pessoas trabalhando, bicho, e a barra é pesada.”

“Esse negócio começou quando a gente tava fazendo o show em São Paulo. Era um show muito violento, muito estranho. A ornamentação do palco era toda de isopor branco. Na primeira parte, eu cantava; na segunda, Gal (Costa) cantava. No sentido de trabalho era fantástico; agora, no sentido comercial, era muito violento e não dava resultado. O pessoal ia lá, olhava pra minha cara e ficava meio assim…Depois, quando nós voltamos pro Rio, eu tinha feito “Gotham City”, com Capim. E Rogério Duprat fez um arranjo que, no final, a orquestra tinha que ficar louca, completamente esquizofrênica. O maestro Tavares – que ia reger – ficou puto. Ele tava levando a sério mas quando viu que a gente tava cantando aos berros, se recusou a reger.”

“Decidi que daqui pra frente, durante seis anos da minha vida, eu vou passar os verões aqui trabalhando, dou uns concertos, gravo um disco e vou viajar pelo mundo. Esse ano vou pro Norte com a minha maquininha super 8. Vou lá, filmo tudo e recolho todo o material. No próximo ano a mesma coisa. Primeiro vou pros Estados Unidos, olhar o Império antes que ele acabe. No outro ano vou pra América Central, volto de novo e vou pra Ásia, depois pra África, e vou ver o que vai sobrar do mundo. Eu vou por aí me informando, meu irmão, vivendo, que a vida é uma só. Uma nova realidade se apresenta: é preciso apreendê-la.”

 

 

 

LEE MILLER

A americana Lee Miller (Poughkeepsie, Nova Iorque 1907 – Sussex, 1977) teve uma vida fascinante e não menos conturbada.

Estuprada aos sete anos, contraiu gonorréia e sofreu durante anos por causa dos tratamentos a que era submetida. Seu pai, foi quem lhe ensinou os primeiros truques da fotografia e Lee era a sua modelo favorita. O fato mais notável dos nus da filha feitos pelo pai Theodore Miller, seja que a modelo parece ausente, separando sua mente do corpo.

Rica, rebelde, bonita e livre, Miller foi para Paris em 1929 para se tornar, ela mesma, uma grande fotógrafa e segundo a revista Time “o mais lindo umbigo de Paris”.

Miller escolheu devidamente o fotógrafo mais artista de todos, Man Ray, de quem foi assistente, amante e musa para ser seu guia no escuro da nova e velha cidade. Man Ray, nascido Emmanuel Radnitsky, na Filadélfia – havia seguido seu amigo Marcel Duchamp de Nova Iorque até Paris, onde foi adotado pelos surrealistas. Miller se embrenhou no Surrealismo trabalhando com os códigos do subconsciente, sonho e delírio do estilo. Inclusive arrumou tempo para ser interpretar uma estátua no curta “O Sangue de um Poeta” de Jean Cocteau, o que deixou Ray louco porque ela foi submetida a uma verdadeira tortura, com os braços atados, a cabeça coberta por uma peruca de papel machê e pintada com uma tinta branca e ainda tendo que enfrentar um boi, salvo de um matadouro para representar um touro.

Man Ray e Robert Penrose

Ray ensinou-lhe vários truques e a tornou uma artista de fato, (solarização e fotos de nus avant-garde) mas o fotógrafo era tão apaixonado e possessivo por ela, que após a separação dos dois, ele ainda escreveu-lhe uma carta arrebatadora:

“Amei você de uma forma extraordinária e possessiva: esse amor reduziu em mim a intensidade de qualquer outra paixão, e, para compensar, tenho tentado justificá-lo, dando a você todas as oportunidades que estão ao meu alcance para que tudo de interessante em você se revele. Quanto mais capaz você parecia, mais o meu amor parecia justificado, e menos me arrependia de qualquer esforço em vão da minha parte (…). Sempre fizemos concessões mútuas – até que surgiu esse novo elemento, que lhe deu a ilusão de que está se libertando de mim…”

Duas das mais famosas obras de arte de Man Ray sobre a perda de sua paixão são:

“Objeto a ser destruído”, um metrônomo com o olho de Lee no ponteiro que teve várias cópias pois nasceu para ser literalmente destruído e “Tempo de Observatório” onde os lábios da amante ondulam nos céus sobre uma grande cidade.

“A sua beleza a transformou em ícone do momento, na perfeita Nova Mulher, que evoluiu do charme “duvidoso” de boneca de porcelana por Louise Brooks ou Clara Bow até o vigor pouco convencional, esbelto e de longas pernas, a força elástica, suavizada por uma fresca inocência americana – um galgo insinuante bonito, ávido para entrar na corrida” como escreveu Francine Prose no livro A Vida das Musas.

Miller montou um estúdio de fotografia na capital francesa, e dedicou-se ao retrato e à fotografia de moda. De volta a Nova Iorque em 1932, tentou a mesma sorte, obtendo algum reconhecimento e dinheiro, mas a sua alma impaciente não iria aguentar aquela vida durante mais tempo. O negócio corria bem até que surgiu Aziz Eloui Bey, um milionário egípcio com quem se casou, fechando o estúdio e indo de mala e cuia para o Cairo.  Nimet, a bela esposa de Aziz se suicidou assim que soube do romance dos dois. E Man Ray tirou um retrato de si mesmo apontando um revólver para a cabeça, sugerindo que iria fazer o mesmo.

Complacente, o marido deixou com que ela tivesse amantes e que continuasse fotografando para que a esposa não ficasse entediada. 5 anos depois, mais uma vez o Surrealismo bateu-lhe à porta através de Roland Penrose, artista interessado nas profundezas do espírito humano, aquele que viria a ser o segundo marido de Lee em Londres. Era uma momento conturbado para a Europa e para o mundo: a Segunda Grande Guerra estava bem próxima de estourar.

A vida boêmia entre geniais artistas inconsequentes, talvez antecipando o que estava por vir – a Guerra -, fez Miller retratar essa fase de sua vida tramando uma de suas fotos mais curiosas, mezzo inspirada em Paul Gauguin, e seus quadros com as taitianas com seios à mostra, e mezzo mesclada ao escandaloso quadro O piquenique no bosque de Édouard Manet, pintado entre 1862 e 1863. Nessa famosa composição de Miller, estão presentes o poeta Paul Eluard e sua mulher Nusch (os que namoram) em companhia do pintor inglês Roland Penrose, do fotógrafo Man Ray e da dançarina Ady Fidelin, num piquenique de verão na Île Sainte-Marguerite em Cannes na França em 1937.

Nessa fase, Miller aceitou o convite de trabalho da revista Vogue.

Em 1939, ela e Penrose souberam ad invasão da Polônia pelos alemães e foram residir em Downshire Hill, Hampstead longe da França e fora do centro de Londres. Mas as bombas nazistas mais tarde chegariam à ilha e Miller não ficou imune a isso. O livro “Grim Glory: Pictures of Britain Under Fire” de Lee mostra uma Londres bombardeada, mas suas fotografias de ruínas são estilosamente sarcásticas e elegantes, como nunca se vira antes.

A um ano do fim da Segunda Guerra Mundial, a revista manda-a para a frente de combate. Lee forma equipa com o fotógrafo da revista Life David E. (ou Dave) Scherman, tornando-se uma das poucas mulheres a fotografar o conflito na Europa. 20 dias depois do Dia D, desembarca na Normandia. Fotografa o cerco a St. Malo, a Libertação de Paris, os combates no Luxemburgo e na Alsácia, o encontro entre russos e americanos em Torgau e a libertação dos campos de concentração de Buchenwald e Dachau. Em Munique, regista as casas de Hitler e Eva Braun. E essa é uma de suas imagens mais conhecidas e provocativas: fotografada por Scherman, Lee surge na banheira do ditador alemão em Munique, entre uma provável arrumação do retrato de Hitler á esquerda e o nu “kitsch” à direita.

Outras fotos fascinantes são a de uma moça loura estendida sobre um sofá como se estivesse adormecida, mas na verdade é a suicida filha do burgomestre nazista de Leipzig e a da casa de Hitler em Berchtesgaden ardendo em chamas.

“A Alemanha possui uma bela paisagem marcada por vilas que são verdadeiras jóias, e cidades arruinadas habitadas por esquizofrênicos. O cenário da Guerra não ocorreu muito dentro do país, a punição pela agressão não foi suficientemente dura.”

Com a queda da Alemanha, Lee segue para leste no rasto dos mortos e feridos, vítimas de um a guerra monstruosa. De regresso a Londres, trabalhou mais dois anos para a Vogue fazendo retratos de celebridades e muitas fotos de moda.

Depois de uma discussão com Penrose, Lee voltou para Paris,onde caiu numa depressão agravada por u consumo descontrolado de álcool e benzedrina. Em uma carat não enviada a Penrose se queixou “de um mundo novo e enganador. Não foi para viver em paz em um mundo de canalhas sem honra, sem integridade e sem vergonha que nenhum de nós lutou”.

A Lee que retornou para a Inglaterra e para Penrose era um desastre físico e mental. Grávida, na casa sem aquecimento de Penrose, se entregou à derrota, inclusive aceitando (após ter feito por milhares de vezes o mesmo) um ménage que incluía ela mesma, Penrose e sua ex-mulher Valentine.  Ah… nesse período ela se divorciou na mais bela tradição muçulmana do egípcio boa praça.

A festa em Farley Farm, casa do recém casado casal em Sussex, torna-se um local de visita obrigatória para a vanguarda artística que passava pela Inglaterra. Porém o seu trabalho como fotógrafa piorou drasticamente. E para completar, em 1955 desistiu de sexo e Roland se entregou a um romance com a trapezista Diane Deriaz. Enquanto Roland virava curador da Tate Gallery em 1960, Miller desinteressada da arte, entrou de cabeça no mundo da culinária.

Lee Miller desencarna aos 70 anos vítima de um câncer em 1977. No início dos anos 80, o filho de ambos, Antony, começa a estudar, conservar e promover as imagens da mãe porque sua esposa queria achar fotos do marido quando era bebê e vasculhando os baús esquecidos no sótão da casa em Farley Farm encontrou o original da matéria sobre o cerco de St. Malo na Europa.